Amizade é designada como um sentimento de grande afeição, apreço e reciprocidade. Sempre pareada com o amor, a amizade envolve relações entre os humanos como grupo social e foi objeto de inquietação ao longo da história. Ela tece laços entre membros de uma família, comunidade ou Estado. Quando relacionada aos graus de parentesco parece condicionada por consanguinidade e herança do nome. Neste caso, não dependem da escolha. Quando deliberada por exercício da liberdade individual, adquiri o estatuto de camaradagem e companheirismo.
O cultivo da amizade é tema recorrente na história da cultura desde as narrativas míticas, do pensamento filosófico e da literatura. Na atualidade, quando o valor da amizade é definido pela quantidade de seguidores que o indivíduo possui em seu facebook, é conveniente resgatar os elementos mínimos de valoração da amizade, permitindo interrogar o compromisso que cada um tem ou não com o trabalho do cultivo da amizade.
Duas cenas: no início da puberdade, quando as relações de amizade são ainda embrionárias (em semente), ocorre uma espécie de competição para saber quem tem mais amigos. E, neste caso, o critério é o número de supostos amigos nas redes sociais: o vencedor lidera o grupo. Outra cena advém da escuta clínica no trabalho com a psicanálise: um estudante universitário, atolado no pântano da posição depressiva, chorava copiosamente dizendo, “ninguém me curte no facebook”. Seu sofrimento ilustra o critério quantitativo que impera como valor na atualidade.
Seguindo com a proposta desta série de artigos, iniciados nas edições anteriores da Arraso, vamos incluir a amizade em nosso catálogo das paixões. Relembrando que adotamos aqui o significado de paixão como afeto, sentimento, emoção que nos constitui como seres falantes. Todo afeto é uma paixão que se expressa em atos e atitudes, comportamentos e relações de sociabilidade exigindo de cada um o trabalho de cultivo, tal como se cultiva uma planta. Não é sem razão que a palavra cultura está contida em agricultura. Os afetos precisam ser cultivados para que possam florescer e frutificar num processo de humanização: condição necessária para adquirir a civilidade.
O tema da amizade é o centro em torno do qual giram o problema da escolha e, portanto, da liberdade. É sempre no campo da ética e da política que encontrarmos a amizade como preocupação predominante entre os pensadores da cultura. Nos catálogos das paixões existentes, a amizade é interrogada pelo seu oposto: como identificar um inimigo? Qual critério permite reconhecer o verdadeiro amigo, distinguindo-o da figura do bajulador, do lisonjeiro? Observemos que a questão da verdade está no cerne do tema, pois há supostos amigos que acabam por se revelar inimigos. Saber distingui-los é fundamental.
Na língua dos gregos há três palavras para designar o amor: eros, philía e ágape. Cada uma referia-se à nomeação de determinado estado afetivo. Já abordamos o campo de significação de Eros. Vamos tratar agora da philía, do amor entre amigos, da viva afeição e sentimento de reciprocidade entre os iguais. Derivado do verbo philéo, significa sentir amizade por alguém, amar com amizade, tratar como amigo, ajudar, auxiliar; amar de coração, dar sinais de amizade, acolher com prazer; procurar, buscar, perseguir para encontrar; agradar-se na companhia de alguém. É neste campo semântico que emergiu a palavra philosophía, amor pelo saber, amizade à sabedoria, procura ou busca do saber.
Aristóteles, o primeiro filósofo a construir um catálogo das paixões, dedicou os livros 8 e 9 da obra Ética à Nicômaco ao tema da amizade. Definindo-a como a mais suprema das virtudes, pois é sumamente necessária à vida: “Porque sem amigos ninguém escolheria viver, ainda que possuísse todos os outros bens. Nas adversidades e infortúnios os amigos são o único refúgio”. A amizade ajuda os jovens, os velhos e “aos que estão no vigor da idade ela estimula à prática de nobres ações, pois na companhia de amigos são mais capazes tanto de agir como de pensar”. Ela também ajuda a manter unidos os Estados e “pode-se dizer que os legisladores têm mais amor à amizade do que à justiça. Quando os homens são amigos não necessitam da justiça, ao passo que os justos necessitam também da amizade; e considera-se que a mais genuína forma de justiça é uma espécie de amizade”.
Estabelecido esta premissa, Aristóteles relacionou a amizade ao amor e definiu três espécies de amizade: 1ª) os que amam os amigos por sua utilidade, pelo benefício que podem obter um do outro; 2ª) os que amam os amigos por causa do prazer que o convívio lhes proporciona ficam apenas no âmbito acidental, pois “a pessoa amada não é amada por ser o que é, mas porque pode oferecer algum bem ou prazer”. Estas duas espécies se dissolvem facilmente, são transitórias e inconstantes: se uma das partes, deixar de ser útil e agradável, a outra deixará de amá-la; 3ª) os que amam os amigos pelo que eles são em sua integridade psíquica (virtude) como alguém que partilha os valores da honestidade, generosidade e bondade.
“A verdadeira e perfeita amizade é entre aqueles que são bons e tem virtudes afins, pois esses desejam igualmente bem um ao outro enquanto bons, e são bons em si mesmos. Ora, os que desejam bem aos seus amigos por eles mesmos são mais verdadeiramente amigos, porque o fazem em razão de seu próprio ser e não acidentalmente, circunstancialmente. Por isso sua amizade é duradoura e a bondade é a virtude mais durável, não transitória. E cada um é bom em si mesmo e para seu amigo, pois os bons são bons em absoluto e úteis uns ao outro no exercício da bondade”.
A terceira espécie de amizade exige tempo de convivência e dedicação contínua. Seu cultivo nos humaniza e seu exercício nos auxilia em muito contra as tendências potencialmente agressivas e destruidoras que impedem a formação de laços afetivos mediados pela amizade. Pois, como ensinou o filósofo, o desejo da amizade pode surgir depressa, mas a amizade não. Sua existência depende do empenho em cultivá-la.
ilustração: Erasmo Spadotto