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Odiar a Si Mesmo é Autoflagelo

A palavra paixão carrega consigo dupla rede de significação: por um lado, estar apaixonado é sentir um amor ardente, um estado de arrebatamento, contentamento, entusiasmo, bem querer; por outro, é provocar aflição, flagelo, tristeza intensa em alguém ou a si mesmo, mal querer. Amar e odiar são paixões primárias mobilizadoras de afetos e definem a relação pulsional entre o Eu e o objeto.

O problema consiste quando o próprio Eu é o objeto de investimento do ódio. Pode parecer trivial quando no momento de raiva, a sentença “Eu me odeio” é enunciada. Há, no entanto, uma dimensão inconsciente deste ódio a si que se revela na forma de um gozo masoquista: o prazer em sofrer, em imputar-se sofrimento sem causalidade somática, orgânica. Obter prazer na dor é um autoflagelo.

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Amor e Ódio: As Paixões Primárias

Nas edições anteriores da Arraso iniciamos o catálogo das paixões com o afeto mais exaltado na hierarquia das emoções: o amor. Ocorre que o amor nunca vem sozinho – aliás, como a maioria dos afetos. As paixões sempre formam um par antagônico e antinômico sem o qual não haveria conflito. As contradições entre estados afetivos constituem o elemento primário das paixões.

Na cultura grega clássica a palavra páthos designava um estado de transbordamento de emoções e sentimentos incontroláveis. Nas narrativas míticas e no discurso filosófico desde a antiguidade, pathós era uma forma de nomear o conflito entre estados afetivos que causam perturbação, transtorno e obscuridade, afetando o juízo crítico e consciente. Os conflitos entre estados afetivos contraditórios causam os maiores transtornos. O caso exemplar é a oposição entre amor e ódio.

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A Língua Paterna do Amor

Seguimos catalogando as paixões. Dado o soberano valor atribuído ao amor, vamos abordá-lo pela linhagem (linguagem) paterna. Nossa referência é o mito, pois ele contém a primeira forma de representação das paixões. Muito antes da emergência do pensamento filosófico na Grécia (século 4 a.C) e do pensamento científico (século 17), os humanóides contraíram e construíram narrativas mí(s)ticas para designar as paixões.

Nas edições anteriores da Arraso destaquei a filiação de Eros e sua transmissão pela língua materna. O ponto de ancoragem dessas reflexões nos foi transmitido por Platão no diálogo O Banquete. Relembrando: cada um dos convivas deveria fazer um elogio ao deus Eros. Estrategicamente, Platão deixou Sócrates por último. E, é claro, o irônico personagem arrasa. Sócrates contou ter ouvido de uma mulher, Diotima (sacerdotisa do templo de Afrodite) a seguinte história da fecundação de Eros: num banquete em comemoração o nascimento de Afrodite (deusa da beleza e dos prazeres), Póros se embriagou do néctar e adormeceu no jardim da morada de Zeus. Por ali perambulava Pênia, em sua penúria, nutria a esperança de recolher as migalhas do festim. Ao ver o belo Póros adormecido desejou ter um filho dele. Deitou-se ao seu lado e concebeu Eros, o deus do Amor. Eros é filho de Pênia com Póros.

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Catálogo das paixões – A Língua Materna do Amor

Na edição anterior da Arraso iniciei a narrativa do amor como a paixão por excelência. Os gregos designavam páthos o estado de transbordamento de emoções e sentimentos incontroláveis. O sujeito apaixonado encontra-se num estado afetivo de perturbação, transtorno e obscuridade afetando seu juízo crítico e consciente. Eros, o deus do amor foi representado na mitologia como o causador dos estados patológicos.

Destaquei o diálogo O Banquete de Platão como registro de nascimento do Amor (Eros). Sócrates contou que ouviu da sacerdotisa Diotima a seguinte narrativa: por ocasião de uma festa para comemorar o nascimento de Afrodite, Póros se embriagou do néctar dos deuses e adormeceu no jardim da morada de Zeus. Por ali perambulava Pênia, que em sua penúria, nutria a esperança de obter algumas sobras do festim. Ao ver o belo Póros adormecido, tomou a decisão num instante: desejou ter um filho com ele. Deitou-se ao seu lado e concebeu Eros, o deus do Amor. Desse modo, Eros é filho de Póros de Pênia. Póros significa passagem, caminho, via de comunicação, ponte, conduto; e também recurso, fartura, excesso, transbordamento; e Pênia significa miséria, pobreza, penúria.

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A Filiação do Amor

Catálogo das Paixões

Para a Luana, filha do amor

O bicho falante é o único ser vivo submetido à ordem simbólica e ao comércio de palavras. Certamente há linguagem em todas as espécies: cada uma delas possui um código de comunicação que lhe é própria. Com a espécie humana não é diferente: estamos submersos num oceano de signos, símbolos e códigos linguísticos. Na classe dos humanos há um fenômeno que atraiu a libido de incontáveis narradores para desvendar, desvelar o mistério dos mistérios: a multiplicidade de línguas maternas. Cada agrupamento hominídeo criou seu próprio código de comunicação, sua linguagem. Há linguagens na linguagem.

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