Outro dia recebi um chiste pelo WhatsApp: o garoto chega ao pai que está sentado, lendo o jornal, e pergunta: pai eu tenho laptop, ipad, tablet, mp3, notebook, smartphone, e você, o que usava na escola? Resposta do pai: a cabeça.
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Quando o inverno chegar
O inverno é a estação temporal que desperta o desejo de se aninhar. Ajuntamento é o outro nome do inverno. As pessoas se encolhem, se escondem, se aquecem e se recolhem. O verão é expansivo, despudorado, sem roupa. O inverno é elegante: casaco, gorro, bota, chapéu.
Nas regiões tropicais as estações do ano parecem biruta. No mesmo dia pode ocorrer as quatro estações. Os países do Norte também estão confusos na marcação do tempo: primavera, verão, outono, inverno. Por lá, o cenário pintado pelas forças da natureza era bem mais definido do que atualmente. Dizem ser resultado do efeito estufa.
O inverno é um significante que nomeia para além da baixa temperatura. Inverno é um estado de espírito. Um modo de ser. Os poetas falam de um espírito invernal. Pintores olhavam para o cenário invernal e inventaram inusitadas tonalidades com a cor branca.
Um exemplo: Vincent van Gogh pintou dezenas de telas invernais. A primeira contém, em germe, a genialidade do iniciante holandês. Foi seu primeiro inverno em Paris (dezembro/1886) e também o encontro com o impressionismo que inaugurou a pintura moderna. A cena escolhida é o alto da colina de Montmartre. O mirante é uma das mais belas vistas da capital francesa.
Quatro luminárias enfileiradas formam a perspectiva. Ao fundo, cinco personagens agasalhados contemplam a névoa gélida. Dois amigos, grudados, olham o nada que a névoa encobre. Ao lado, um senhor se esforça para ler o jornal. No ponto mais alto, num tablado, uma dama de vestido azulado se aconchega num cavalheiro de cartola. Toda cena é banhada num tom cinzento invernoso. A mestria do pintor vacilante está no modo como retratou o vento. O expectador é capaz de sentir o frio retratado na tela.
Passear no inverno é atividade exigente. As condições externas são desafiadoras e o transeunte precisa encapotar-se para enfrentar o frio cortante. Mesmo assim, viajar no inverno tem lá sua beleza e não há porque recuar frente ao clima contestador.
Certa vez decidi passar o natal com neve. Escolhi Covilhã, cidade medieval na Serra da Estrela, norte de Portugal. Da estação Santa Apolônia em Lisboa, o comboio subiu margeando o rio Tejo contornando plantações displicentes de oliva. No inverno da Península Ibérica, o único verde predominante são os novos galhos das oliveiras podadas. Alguns pinheiros e castanheiras resistentes colorem o azul cinzento.
Os estudantes da Universidade da Beira Interior imprimem vivacidade nesta cidade em declive. No período do Natal, com o recesso escolar, a cidade parece um fantasma numa encosta da serra. Esperamos a chuva de neve na praça central: não foi desta vez. Para brincar na neve foi preciso subir até o cimo da Serra com dois mil metros de altitude. Percorrermos 20 km de encostas e, aos poucos, o branco da neve cobria a paisagem até dominá-la totalmente, formando um monte de gelo em flocos.
Criar boneco de neve é o primeiro ato impulsivo para o batismo no branco indecifrável. Uma hora de brincadeira e o incômodo frio começa a expulsar em busca de ambiente quente com vinho e chocolate. O queijo de ovelha, o presunto serrano e as saborosas azeitonas in natura são aperitivos inesquecíveis.
Com a cidade fechada no Natal e sem ter o que fazer, decidimos visitar duas vilas próximas: Sortelha e Belmonte. Sortelha é cercada por alta muralha de pedras construída na Idade Média. Caminhando pelas ruelas encontrei Filomena, senhora de 86 anos em estado de luto permanente. Nascida na vila de pedra, esperava a morte chegar. Resignada a viver no casebre na crosta da muralha, tecia fios de capim formando cestinhas oferecidas aos turistas. Rezava seu rosário de lamentações e súplicas à Virgem das Neves, padroeira das pedras imortais e do frio imemorial.
Ano 8; nº 65; 1º semestre/2016
Ao Gato Preto Editora – Piracicaba/SP
Ilustração: Maria Luziano
Designado à Beleza
No ato de germinação da filosofia na cultura ocidental encontra-se o desígnio do ser falante: os seres humanos estão designados à beleza, à justiça e à verdade. Esta referência primária é de grande importância para resgatar os valores que fundamentam a imagem do humano em sua especificidade no reino animal.
A beleza é um chamado a indicar com precisão um caminho, à cada um em particular e à cada coletivo social, para o cultivo das possibilidades de prazer estético e imprimindo na vida, graça, leveza e prazer fluído. A belo designa: marca com precisão. Variável no tempo e nas condições, a beleza continuará sempre exercendo sua condição designativa.
No livro História da Beleza, organizado por Umberto Eco, diferentes objetos estão representados para narrar a longa trajetória da relação dos humanos com o belo. No primeiro parágrafo, Eco definiu sua posição: “Belo – juntamente com gracioso, bonito ou sublime, maravilhoso, soberbo e expressões similares – é um adjetivo que usamos frequentemente para indicar algo que nos agrada. Neste sentido, belo é igual àquilo que é bom e, de fato, em diversas épocas históricas criou-se um laço estreito entre o Belo e o Bom”.
A correlação entre Belo e Bom demonstra bem seu caráter de juízo estético sensível. Atribuímos Bom àquilo que nos proporciona uma experiência de prazer, contentamento, felicidade. Logo, a beleza é um juízo de valor que qualifica o que nos agrada. Este aspecto vai além do caráter estritamente pessoal – há experiências com a beleza que adquiriram estatuto universalizante. Isto é, transcende, vai além, do tempo e do lugar.
Em 1930, Sigmund Freud construiu o mais derradeiro diagnóstico do mal-estar na civilização e elencou os tratamentos paliativos para suportar nossa condição infeliz: religião, ciência e arte são os instrumentos disponíveis para tratar do mal-estar. “A questão da finalidade da vida humana já foi posta inúmeras vezes. Jamais encontrou resposta satisfatória. O que os homens pedem da vida e o que desejam nela alcançar? É difícil não acertar a resposta: eles buscam a felicidade, querem se tornar e permanecer felizes”.
Como esse objetivo não se realiza em permanente, a civilização ofereceu lenitivos no mercado da infelicidade. A opção prescritiva do Dr. Freud é atualíssima: o amor à beleza é o que tem menos efeitos colaterais.
No cultivo da felicidade, o gozo da beleza oferece aos praticantes um bem-estar capaz de suportar as contingências de estados de infortúnios. Onde quer que a beleza se mostre a nossos sentidos e ao nosso julgamento, sentenciou Freud, a beleza das formas e dos gestos humanos, de objetos naturais e de paisagens, de criações artísticas, são recursos para mitigar a dor da existência. “A fruição da beleza tem uma qualidade sensorial peculiar, suavemente inebriante. Não há utilidade evidente na beleza, nem se nota uma clara necessidade cultural para ela; no entanto, a civilização não poderia dispensá-la”
Para quem deseja exercitar o cultivo a beleza, duas sugestões:
# “O triunfo da cor: o pós-impressionismo” no Centro Cultural Banco do Brasil em São Paulo. 75 telas do acervo do Musée d’Orsay e Musée de l’Orangerie em Paris; disponíveis até 07/julho próximo. Rara oportunidade para contemplar, face-a-face, os amigos intempestivos: Vincent van Gogh e Paul Gauguim. E também contemplar a relação das telas com os fundadores da pintura moderna.
# “Picasso: mão erudita, olho selvagem” no Instituto Tomie Ohtake também na capital; até 14/agosto. Ao todo, 116 obras do genial espanhol: pintura, escultura, desenho e gravura. O acervo vem do Musée National Picasso-Paris e traça um percurso cronológico e temático do período de sua criação. É a maior exposição de Picasso já realizada no Brasil.
Ano 8; nº 64; 1º semestre/2016
Ao Gato Preto Editora – Piracicaba/SP
Ilustração: Erasmo Spadotto
Esquecer e recordar: um drama psíquico
O esquecer é um ato corriqueiro quando não está ligado a patologias específicas. Quem nunca esqueceu nomes, lugares, objetos? Há casos trágicos frequentes de pais que esquecem os filhos trancados no carro. Os lapsos da memória nos colocam em situações embaraçosas. Esquecer e recordar são atuações psíquicas que encenam a condição existencial do sujeito.
No livro Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana, publicado em 1901, Sigmund Freud analisou o esquecimento de nome próprio como exemplo para demonstrar o funcionamento psíquico dos seres humanos. Contou um lapso da memória que lhe ocorreu quando tentava, em vão, lembrar o nome do pintor renascentista Luca Signorelli.
Numa viagem de férias pela Itália em agosto/1898, decidiu navegar pelo mar Adriático e escolheu Ragusa, a bela cidade siciliana, como ponto de ancoragem para outros passeios pela região. Num deles, estava no coche um advogado de Berlim com o qual conversava sobre fotografias e aproveitou para recomendar ao interlocutor que visitasse a Catedral de Orvieto com o propósito de contemplar os afrescos do ciclo do fim do mundo e do juízo final pintados por…. “O nome do pintor me escapava e não houve jeito de lembrá-lo. Forcei a memória, passei em revista a todos os detalhes dos dias em Orvieto e pude constatar que nenhum deles se atenuava ou se apagara. Conseguia, aliás, representar as imagens de forma mais viva do que normalmente consigo”.
As imagens mais vivas que impregnaram o esquecimento do nome do pintor estavam associadas à visão da cena A ressurreição da Carne, pintada por Signorelli na capela de San Brizio na catedral de Orvieto, região da Úmbria. A catedral sobreviveu as guerras permanecendo intocável através dos tempos. Signorelli tornou a figura humana uma entidade arquitetónica capaz de expressar uma dramaticidade sem igual. Foi nestas cenas que Michelangelo se inspirou, anos depois, para compor sua versão do Juízo Final no altar mor da capela Sistina.
Na cena A Ressurreição da Carne, Freud encontrou o significante que inscreveu o conflito psíquico vivido por ele quando de sua visita a Orvieto. O lapso de memória é revelador de sua condição existencial e, ao mesmo tempo, do ato de fundação da teoria psicanalítica.
Antes da travessia, escreveu ao amigo Wilhelm Fliess: “Hoje, ao meio dia, partirei com Martha para o Adriático; se vamos ficar em Ragusa, Grado, ou algum outro lugar, será decidido no caminho”. Se encontrava abatido por não encontrar um substrato anatomo-fisiologico para sua escuta clínica dos sintomas histéricos: “o segredo dessa inquietação é a histeria”, continuou a narrativa da carta. “Na inatividade daqui esta inquietação passou a me oprimir pesadamente a alma. Agora, meu trabalho me parece ter muito menos valor e minha desorientação parece completa”.
Citou o provérbio, “quem procura acha, frequentemente, muito mais do que deseja” para chegar à seguinte conclusão: “A consciência é apenas um órgão sensorial; todo conteúdo psíquico é apenas representação; todos os processos psíquicos são inconscientes”.
Ao retornar da viagem à Itália, escreveu novamente a Fliess: “a minha psicologia esta suspensa no ar, sem uma base orgânica”. Freud não encontrava um modo de ajustar a sua escuta clínica com os pressupostos da neuro-fisiologia de seu tempo: “não sei como prosseguir, preciso comportar-me como se apenas o psicológico estivesse em exame. Por que não consigo encaixá-los [o orgânico e o psíquico] é algo que nem sequer começei a imaginar”.
Se o esquecimento é próprio da atividade psíquica, sua função é recordar que a memória e a consciência se excluem mutuamente. Há uma memória que não é acessível pela lembrança consciente: nela estão inscritos, como traços mnêmicos, nossas vivencias de dor e prazer. Recordar pelo esquecimento é inserir-se num jogo de significação que torna a vida um influxo de forças oriundas do passado e projetivas de futuro.
Fonte:
Revista Arraso / Estilo
Ano 8; nº 62; 1º semestre/2016
Ao Gato Preto Editora – Piracicaba/SP
Ilustração: Maria Luziano
Amar o amor
O romance de Tristão e Isolda foi elevado a condição de mito fundador do amor moderno. Denis de Rougemont escreveu em 1938 o ensaio O Amor e o Ocidente para estabelecer os fundamentos do amor na modernidade nos romances de cavalaria no final do período medieval e neles encontrou as insígnias do chamado amor-cortês.
No prefácio à 1ª edição deixou clara sua posição: “Não quis enaltecer nem depreciar aquilo que Stendhal chamava de amor-paixão, mas tentei descrevê-lo como um fenômeno histórico de origem propriamente religiosa. Parti de um tipo de paixão tal como a vivem os ocidentais, de uma forma extrema, aparentemente excepcional: o mito de Tristão e Isolda. Precisamos desta referência fabulosa, deste exemplo brilhante e banal se quisermos compreender o sentido e a finalidade da paixão em nossas vidas”.
Esta referência a um dos gênios das letras francesas é boa estratégia retórica pois indica com precisão seu interlocutor: Do Amor, publicado por Henry Beyle, em 1820. Adotando o pseudônimo Stendhal, Beyle narrou sua experiência do amor-paixão vivido com Matilde Dembrowski.
No prefácio a edição de 1826, escreveu: “Peço que não abra este livro o homem que não foi infeliz por causas imaginárias estranhas à vaidade. O livro que se segue explica simples, razoável e matematicamente, por assim dizer, os diversos sentimentos que se sucedem uns aos outros e cujo conjunto se chama a paixão do amor. Para seguir com interesse um exame filosófico do amor-paixão é preciso que haja no leitor algo além da inteligência; é absolutamente necessário que ele tenha visto o amor”.
Na bela metáfora: “O amor é um amontoado brilhante formado por milhares de estrelinhas, cada uma delas sendo, muitas vezes, uma nebulosa; semelhante a via láctea”. Concluiu: “todo esse prefácio foi escrito para anunciar que este livro tem a infelicidade de só pode ser compreendido por pessoas que encontraram tempo na vida para cometer loucuras em nome do amor”.
No segundo prefácio, em 1854, foi mais explícito: “Só escrevo para cem leitores, para os que são infelizes, amáveis, encantadores. Se você já foi infeliz na vida durante seis meses por amor, então pode ler este livro. Se você nunca foi infeliz no amor-paixão, se não sofreu os efeitos dessa fraqueza das almas fortes, então não se aproxime”.
A descrição sobre o nascimento do amor em Stendhal foi apropriada de maneira exemplar para os comentários sobre o trágico romance de cavalaria. “A história do amor-paixão, em todas as grandes literaturas, desde o século 13 até nossos dias, é a história da decadência do mito cortês na vida ‘profanada’. É a narrativa das tentativas cada vez mais desesperadas de Eros para substituir a transcendência mística por uma intensidade comovida. Mas, grandiloquentes ou lamuriosas, as figuras do discurso apaixonado, as ‘cores’ de sua retórica, nunca serão mais que exaltações de um crepúsculo, promessas de glória jamais cumpridas”.
O amor-paixão do mito foi descrito pela audaciosa pergunta do escritor: “Tristão ama Isolda? É amado por ela? Nada de humano parece aproximar nossos amantes. Tudo leva a crer que livremente jamais teriam escolhido um ao outro. Mas eles beberam o philtrum do amor, e eis a paixão”. A palavra philtrum designa bebida, poção, que faz nascer um estado de encantamento e ternura.
“Se ela me ama, é por causa do philtrum / Não posso dela separar-me / Nem ela de mim”. Assim fala Tristão. E Isolda depois dele: “Senhor, por Deus onipotente / Ele não me ama, nem eu a ele / Foi um philtrum que bebi / E ele também: esse foi nosso pecado”.
Amar o amor é sofrer os efeitos de um certo feitiço. Não é sem motivo que na iconografia Eros é representado na forma de cupido, provido de arco e flechas, para acertar os corações. Na ponta da flecha contém uma poção encantadora. Por isso, como disse o poeta: “quem ama nunca sabe o que ama; nem sabe porque ama e nem o que é amar”.
Fonte:
Revista Arraso / Noivas
Ano 8; nº 61; 1º semestre/2016
Ao Gato Preto Editora – Piracicaba/SP
Ilustração: Maria Luziano