Quando o inverno chegar

Quando o Inverno Chegar

O inverno é a estação temporal que desperta o desejo de se aninhar. Ajuntamento é o outro nome do inverno. As pessoas se encolhem, se escondem, se aquecem e se recolhem. O verão é expansivo, despudorado, sem roupa. O inverno é elegante: casaco, gorro, bota, chapéu.

Nas regiões tropicais as estações do ano parecem biruta. No mesmo dia pode ocorrer as quatro estações. Os países do Norte também estão confusos na marcação do tempo: primavera, verão, outono, inverno. Por lá, o cenário pintado pelas forças da natureza era bem mais definido do que atualmente. Dizem ser resultado do efeito estufa.

O inverno é um significante que nomeia para além da baixa temperatura. Inverno é um estado de espírito. Um modo de ser. Os poetas falam de um espírito invernal. Pintores olhavam para o cenário invernal e inventaram inusitadas tonalidades com a cor branca.

Um exemplo: Vincent van Gogh pintou dezenas de telas invernais. A primeira contém, em germe, a genialidade do iniciante holandês. Foi seu primeiro inverno em Paris (dezembro/1886) e também o encontro com o impressionismo que inaugurou a pintura moderna. A cena escolhida é o alto da colina de Montmartre. O mirante é uma das mais belas vistas da capital francesa.

Quatro luminárias enfileiradas formam a perspectiva. Ao fundo, cinco personagens agasalhados contemplam a névoa gélida. Dois amigos, grudados, olham o nada que a névoa encobre. Ao lado, um senhor se esforça para ler o jornal. No ponto mais alto, num tablado, uma dama de vestido azulado se aconchega num cavalheiro de cartola. Toda cena é banhada num tom cinzento invernoso. A mestria do pintor vacilante está no modo como retratou o vento. O expectador é capaz de sentir o frio retratado na tela.

Passear no inverno é atividade exigente. As condições externas são desafiadoras e o transeunte precisa encapotar-se para enfrentar o frio cortante. Mesmo assim, viajar no inverno tem lá sua beleza e não há porque recuar frente ao clima contestador.

Certa vez decidi passar o natal com neve. Escolhi Covilhã, cidade medieval na Serra da Estrela, norte de Portugal. Da estação Santa Apolônia em Lisboa, o comboio subiu margeando o rio Tejo contornando plantações displicentes de oliva. No inverno da Península Ibérica, o único verde predominante são os novos galhos das oliveiras podadas. Alguns pinheiros e castanheiras resistentes colorem o azul cinzento.

Os estudantes da Universidade da Beira Interior imprimem vivacidade nesta cidade em declive. No período do Natal, com o recesso escolar, a cidade parece um fantasma numa encosta da serra. Esperamos a chuva de neve na praça central: não foi desta vez. Para brincar na neve foi preciso subir até o cimo da Serra com dois mil metros de altitude. Percorrermos 20 km de encostas e, aos poucos, o branco da neve cobria a paisagem até dominá-la totalmente, formando um monte de gelo em flocos.

Criar boneco de neve é o primeiro ato impulsivo para o batismo no branco indecifrável. Uma hora de brincadeira e o incômodo frio começa a expulsar em busca de ambiente quente com vinho e chocolate. O queijo de ovelha, o presunto serrano e as saborosas azeitonas in natura são aperitivos inesquecíveis.

Com a cidade fechada no Natal e sem ter o que fazer, decidimos visitar duas vilas próximas: Sortelha e Belmonte. Sortelha é cercada por alta muralha de pedras construída na Idade Média. Caminhando pelas ruelas encontrei Filomena, senhora de 86 anos em estado de luto permanente. Nascida na vila de pedra, esperava a morte chegar. Resignada a viver no casebre na crosta da muralha, tecia fios de capim formando cestinhas oferecidas aos turistas. Rezava seu rosário de lamentações e súplicas à Virgem das Neves, padroeira das pedras imortais e do frio imemorial.

Fonte:
Revista Arraso / Edição Aniversário 8 anos
Ano 8; nº 65; 1º semestre/2016
Ao Gato Preto Editora – Piracicaba/SP
Ilustração: Maria Luziano