Category Archives: Jornais

Ensaios de Sexualidades em Viena

Há livros que são acontecimentos no tempo e no espaço. Outros são simples mercadorias, igualando-se às demais disponíveis para o consumo. Os livros que tem identidade são aqueles que instauram ruptura e descontinuidade em seu contexto histórico. Há os que orbitam em paradigmas dominantes em um dado momento e, portanto, não figuram como um acontecimento, não causando ruptura na cultura e nos modos de representação subjetiva. Os livros de psicopatologia sexual, por exemplo, circundavam o grande sol da biologia no final do século 19. Eles fizeram a cartografia dos desvios do comportamento sexual genitalmente centrado para fins reprodutivos. Sendo a norma um construto científico, tudo o que desvia da norma é patológico. O pecado de outrora virou perversão, anormalidade. É neste cenário que o médico neurologista Sigmund Freud escreveu os Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade, publicado em 1905, depois de muita hesitação, em Viena.

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O conto da pedra que cresce em Iguape

Continuando o trajeto desta série, apresentando a carteira de identidade de livros de filosofia e literatura, hoje colhemos um conto do escritor franco-argelino Albert Camus. Incluído no livro O Exílio e o Reino, o conto A Pedra que Cresce foi publicado em 1957. Na versão original, o conto intitulava-se Uma Macumba no Brasil. No escrito, o narrador conta a viagem e estadia de um engenheiro francês à pequena cidade do Vale do Ribeira, no interior sul de São Paulo, para preparar a construção de uma represa.

Iguape — em tupi, significa enseada do rio — foi colonizada no final do século 16 e designada Freguesia de Nossa Senhora das Neves da Vila de Iguape. Em 1848, elevada a condição de cidade do Bom Jesus de Iguape, a padroeira inicial cedeu lugar a um culto e devoção popular à imagem do Bom Jesus encontrada por pescadores e alojada em uma gruta onde se acredita na existência de uma pedra que cresce. Todo ano, peregrinos de várias regiões visitam Iguape para pagar promessas, pedir graças ao Bom Jesus e levar uma lasca da pedra para casa.

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A alegre ciência: elogio à vida em sua singularidade

Desde que tomei gosto pela leitura, encontrei nos livros companhia para percorrer os caminhos que tenho trilhado no decurso de minha existência. Os livros ganhavam uma personalidade, identidade antropomórfica. Gosto de pensar que o livro tem registro de identidade, semelhante a um R.G. Ele é um objeto no mundo que foi criado: tem um pai ou uma mãe, na verdade, seu autor (a) assume na escrita a função paterna e materna. Tem também um nome, seu título (às vezes, subtítulos — uma espécie de adjetivo agregado ao título).

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Réquiem para Lucília

Fui buscar na Lacrimosa de Wolfgagng Amadeus Mozart a inspiração para narrar meu réquiem em homenagem ao descanso eterno de Lucília Augusta Reboredo. A lembrança inicia sua cavalgada nas reuniões sobre inovação curricular do curso de psicologia nas salas do atendimento clínico no atual Museu Marta Watts da Universidade Metodista de Piracicaba. No fim da década de 1980, partilhávamos o desejo de uma formação acadêmica integrada na tríade ensino, pesquisa e extensão. Os conteúdos de ensinamento se enlaçavam na prática política e não nas demandas do mercado. Sabíamos da volatividade dessas demandas. Sonhávamos com um profissional da psicologia que pudesse assumir eticamente seu compromisso com os miseráveis abandonados em favelas e periferias da cidade.

 

 

 

 

 

 

 

 

Ela com sua histórica formação na Pontíficia Católica de São Paulo, eu com minha formação marxista na PUC-Campinas. Ela formada num dos maiores celeiros da psicologia social. Lá em São Paulo, a PUC abrigava relevantes pesquisadores que marcaram a histórica da psicologia no Brasil. Lá estava Ela. Sua prática docente foi instituída naquele campus onde a pesquisa em psicologia social dava o tom para a formação dos futuros psicólogos. Lá era um verdadeiro encontro com as políticas públicas de saúde psíquica pelas práticas de subjetivação da cidadania. O encontro inventivo entre pesquisa e extensão. O saber acadêmico com o cheiro das ruas e o sabor da justiça social. Ela se fez no compromisso com a luta política num espaço de confronto. Naquele campus ocorreu uma das batalhas contra a ditadura militar. Muitos professores foram mortos, perseguidos, torturados. E ela se fez no combate para que a abertura política pudesse ser também uma abertura para outras possibilidades de existência. A defesa da cidadania passava pela aquisição simbólica de si na efetiva relação com os outros.

De Eu e Tu ao Nós. As relações sociais são formadoras do psiquismo individual. Seu trabalho virou livro e fez história na formação dos psicólogos. Ela veio a Piracicaba com seu engajamento certeiro: a vida psíquica é comunitária. Fomentar a vida comunitária para que nela cada um pudesse experimentar o inclusivo nós. Tratar do psiquismo é dar condições materiais e simbólicas para que os enlaçamentos criem identidades psíquicas flutuantes. Flutuantes como as mandalas que Ela criou enquanto a esclerose lateral amiotrófica (ELA) sorrateiramente solapava seus movimentos. Com as mandalas, Lucília narrou esteticamente, seu cântico babilônico. A nostalgia de um tempo que se escoava com a perda progressiva dos movimentos até lhe restar apenas o movimento ocular. Com os olhos escreveu sua trágica situação:
um espírito aprisionado num corpo inerte. O livro A Dança dos Beija-flores no Camarão Amarelo (Jacintha Editores) é a expressão mais sublime da dicotomia corpo/alma instaurada por Platão. Nele, cada frase foi construída num lúcido exercício psíquico e ditada, letra a letra, pelo movimento ocular entre uma tabela alfanumérica e a pessoa que estava ao lado para grafar a sinalização dada pelo olhar. A apresentação é dilacerante: “Meu intelecto e meus afetos não reconhecem mais o corpo que antes os concretizavam na relação entre o pensar e o fazer.

Filosoficamente, é como se eu estivesse vivendo a separação do espírito e da matéria. O reencontro dáse no riso e no choro, quem sabe por meu corpo ainda ter autonomia para viabilizar tais emoções. São três anos de angústia, desespero e tristeza indescritíveis. Entretanto, sempre acreditei que o ser humano possui possibilidades de reinventar a vida em quaisquer circunstâncias. E essa crença me faz sentir que apenas ‘quebrei as asas’ e terei de aprender a alçar outros e novos voos”. Assim, de forma abrupta e sublime, o leitor é convidado a percorrer o curso e percurso de seu adoecimento iníciado em 2006. Seu anjo da guarda, Mariá Aparecida Pelissari, presenteou com a seguinte introdução: “É soletrando com os olhos que Lucília constrói sentidos. Essa base para sua expressão é uma espécie de escritura de si, pois que, ao narrar seu percurso recente, Lucília se reinventa e possibilita sua nova inscrição no mundo. Assim, este livro confere o suporte ideal para ela ocupar um lugar na escrita de si, ao autorizar-se a publicar e esperar algum efeito no outro e em si própria. Por suas páginas, os olhos de Lucília falam, sorriem, ensinam abraçam”. Nesse percurso convivendo com ELA, Lucília foi capaz de superar a si mesma: “creio que levei minha existência inteira ultrapassando meus próprios limites. Não foi por acaso que, vindo de uma família pobre de imigrantes portugueses, nascida em uma aldeia na região de Trás-os-Montes, cheguei a me formar doutora em psicologia e ser professora universitária. E por isso, também, eu tinha tanta resistência em aceitar minhas limitações físicas”. A cada nova restrição, uma nova alternativa de expressão. Suavemente demonstrou haver vida para além d’ELA. Certo dia Ela convidou-me para visitá-la. Ao contemplar seus olhos percebi de súbito a potência da alegria silenciosa. Aquele que só pode existir entre os que se amam. O silêncio pairava entre notas musicais do Quarteto de Cordas que foram lhe presentear e minhas lágrimas que jorravam sem cessar. Chorei por mim, por Ela e pela efemeridade de nossas vidas. Lacrimosamente, a vida segue embalada pelas lembranças: memória de valores coloridos com a vertigem da liberdade. Precário, provisório, perecível.

Descanse em paz, minha querida.