Ensaios de Sexualidades em Viena

Há livros que são acontecimentos no tempo e no espaço. Outros são simples mercadorias, igualando-se às demais disponíveis para o consumo. Os livros que tem identidade são aqueles que instauram ruptura e descontinuidade em seu contexto histórico. Há os que orbitam em paradigmas dominantes em um dado momento e, portanto, não figuram como um acontecimento, não causando ruptura na cultura e nos modos de representação subjetiva. Os livros de psicopatologia sexual, por exemplo, circundavam o grande sol da biologia no final do século 19. Eles fizeram a cartografia dos desvios do comportamento sexual genitalmente centrado para fins reprodutivos. Sendo a norma um construto científico, tudo o que desvia da norma é patológico. O pecado de outrora virou perversão, anormalidade. É neste cenário que o médico neurologista Sigmund Freud escreveu os Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade, publicado em 1905, depois de muita hesitação, em Viena.

O título escolhido aponta para a longa tradição ensaística iniciada no século 16 por Michel de Montaigne e atravessa a história da modernidade até encontrar sua expressão máxima na escrita do

filósofo alemão Friedrich Nietzsche no final do século 19. No campo das artes, um ensaio se refere à montagem experimental a portas fechadas, que vale como sessão preparatória à estréia para o público. O livro de Freud é bem isso: a passagem de sua experiência clínica ao público.

Os Três Ensaios foram gestados e redigidos durante as viagens de Freud pelas cidades do Mediterrâneo, de 1895 a 1909. No livro As Cidades de Freud, Giancarlo Ricci detalha o percurso pela região da Itália, sempre rondando e nunca chegando a Roma. Foi de lá que partiu para Atenas, em 1904, quase por acaso, por um estranho equívoco. Foi nas colunas da Acrópole o lugar de sua decisão: publicar os ensaios sobre a sexualidade.

Cada ensaio foi escrito com retórica singular. A composição do livro apresenta o tema da sexualidade em três tempos: ver (primeiro ensaio), compreender (segundo ensaio) e concluir (terceiro ensaio). A gênese dos Três Ensaios encontra-se no rascunho A Etiologia das Neuroses, enviado 8 de fevereiro de 1893 ao amigo Wilhelm Fliess, médico otorrino de Berlim: “as neuroses são inteiramente evitáveis, bem como inteiramente incuráveis. A tarefa do médico desloca-se por completo para a profilaxia”. Se a neurose é o preço que paga para ser civilizado, “a sociedade parece condenada a cair vítima de neuroses incuráveis, que reduzem a um mínimo o prazer da vida, destroem relações conjugais e acarretam danos hereditários para toda a geração vindoura.”

Os Três Ensaios respondem a um pressuposto fundamental: os humanos são seres sexualmente perversos, pois criam estratégias de prazer que subvertem a finalidade do sexo biológico: reproduzir a espécie. A pulsão sexual é a perversão do instinto sexual. Diferente dos animais, o bicho falante faz sexo por prazer, por afeto, pela fala, pelos sintomas e, sobretudo, como exercício de poder. No primeiro ensaio, Freud caracterizou as aberrações sexuais em duas classes: os desvios com respeito ao objeto sexual e; os desvios com respeito ao alvo sexual. Ao final, estabeleceu duas premissas: “os sintomas psiconeuróticos são a atividade sexual dos doentes; os sintomas representam um substituto de desejos que atraem sua força da fonte da pulsão sexual”.

Freud reconheceu que tais premissas atraíram a oposição contra sua tese da sexualidade infantil polimorfa e perversa. Os adversários da psicanálise não admitiam o pressuposto elementar que justificava sua hipótese da sexualidade: a pulsão sexual que atua nas psiconeuroses é a mesma que atua nas pessoas que se consideram normais. As fronteiras entre o normal e patológico foram rompidas. Desde então, a sexualidade foi libertada dos grilhões da moral normativa (quer científica, quer religiosa) e pode ser plural na ética da singularidade.

in: série “livros e lugares” – Caderno Cultura do Jornal de Piracicaba, 29/set/2013