Category Archives: Jornais

Don Juan, o burlador de Sevilha (2)

Seguimos destacando o pressuposto para incursão nas versões da peça teatral El Burlador de Sevilha ao longo da história da literatura moderna. Antes de adentrar na estrutura textual da versão atribuída a Tirso de Molina no alvorecer do século 17, convém retornar ao argumento do escritor-filósofo Albert Camus no ensaio O Mito de Sísifo publicado no contexto da 2ª Guerra Mundial.

Na terceira parte do ensaio (O Homem Absurdo), Camus escolheu Don Juan como protótipo moderno do herói mítico (Sísifo) da antiguidade grega. Se for imprescindível reconhecer Sísifo feliz, de igual modo, podemos reconhecer Don Juan feliz. Esse aspecto é determinante na leitura das diferentes versões do mítico Don Juan. A alegria transbordante do “donjuanismo” foi destacada com precisão: Don Juan é um personagem da “commedia dell’arte”; do teatro comédia encenado nas praças públicas. Representar suas aventuras burlescas era sinônimo de sucesso para qualquer companhia de teatro na Europa moderna. Seu apelo popular era pura diversão: riso fácil.

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Don Juan, o burlador de Sevilha (1)

No cenário de Sevilha, um homem consagrado a Deus escreveu peças teatrais para transmitir os valores da cristandade ao povo espanhol. No texto El Burlador de Sevilha, encontra-se um personagem que personificou os valores da modernidade ainda em estado germinal. A eterna batalha do Bem contra o Mal adquiriu neste burlador um novo e inusitado estatuto antropológico. No alvorecer da Idade Moderna, Don Juan Tenório foi elevado à categoria mítica de herói combatente: o que fez de suas conquistas, o Sumo Bem.

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A História do Olho em Sevilha (4)

No ensaio filosófico O Erotismo publicado em 1957, Georges Bataille distinguiu, numa relação dialética, dois termos (interdito e transgressão): “A transgressão excede sem destruir um mundo profano de que ela é o complemento. A sociedade humana não é somente o mundo do trabalho. Simultaneamente ela é composta pelo mundo profano e pelo mundo sagrado, que são as duas formas complementares. O mundo profano é o dos interditos. O mundo sagrado abre-se a transgressões limitadas. É o mundo da festa, dos soberanos e dos deuses”. A touromaquia (arte de torear) foi concebida pelo autor como uma festa sagrada num mundo profano. No desfecho da novela erótica A História do Olho, como cenografia há uma arena de touros (tourada). O erotismo adquiriu, com Bataille, um estatuto de experiência sagrada no profano: um festim estético sensual.

Após percurso por alguns lugares de Sevilha, chegamos ao conteúdo do livro A História do Olho. Como destacado no artigo anterior, o livro foi escrito por Bataille em 1927, por indicação

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A História do Olho em Sevilha (3)

In memorian a Paco de Lucía e sua paixão flamenca

A Catedral de Sevilha é uma orgia visual: o olho é inundado com uma polifonia de imagens, cores e formas. Construída sobre a mesquita maior almohade do século 9, a Catedral conservou de seu passado muçulmano o Patio de los Naranjos (pátio das laranjas) onde os fiéis de Allah lavavam, na fonte central, as mãos e os pés antes das orações. Com ascensão dos reis católicos ao poder político, o cristianismo tornou-se a força hegemônica outrora exercida pela cultura islâmica. A mesquita se transformou num dos mais belos templos cristão.

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A História do Olho em Sevilha (2)

Leonardo da Vinci, com seu inquietante olhar, escreveu: “Não vês que o olho abraça a beleza do mundo inteiro? O olho é a janela do corpo humano, por onde a alma especula e frui a beleza do mundo. Ó admirável necessidade! Quem acreditaria que um espaço tão reduzido seria capaz de absorver as imagens do universo?”. Desde os mitos fundadores da civilização ocidental ao pensamento filosófico e literário, o olho é representado como janela da alma e espelho do mundo.

No livro A Viagem: Caminho e Experiência (Editora Aleph, 2013), Luiz Gonzaga Godoi Trigo traça uma genealogia da experiência histórica de viajar, percorrer caminhos estranhos às nossas experiências cotidianas, marcadas pela repetição. Viajar é vivenciar, através de experiência sensual, lugares diferentes. Livre-docente em Lazer e Turismo pela ECA/USP, Trigo, utilizando fontes primárias de relatos de viajantes desde a Antiguidade até o tempo atual dos blogs e facebook, se espalha em narrativas com acuidade de observador turismólogo apaixonado por filosofia, literatura, história e antropologia. No aforismo de Plotino (tradutor de Patão no alvorecer da era cristã), “o olho não vê o que o espírito não sabe”, o autor define o pressuposto básico do livro. Eis a diferença entre turista e viajante: o turista conta o que conheceu; o viajante o que reconheceu.

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