A História do Olho em Sevilha (2)

Leonardo da Vinci, com seu inquietante olhar, escreveu: “Não vês que o olho abraça a beleza do mundo inteiro? O olho é a janela do corpo humano, por onde a alma especula e frui a beleza do mundo. Ó admirável necessidade! Quem acreditaria que um espaço tão reduzido seria capaz de absorver as imagens do universo?”. Desde os mitos fundadores da civilização ocidental ao pensamento filosófico e literário, o olho é representado como janela da alma e espelho do mundo.

No livro A Viagem: Caminho e Experiência (Editora Aleph, 2013), Luiz Gonzaga Godoi Trigo traça uma genealogia da experiência histórica de viajar, percorrer caminhos estranhos às nossas experiências cotidianas, marcadas pela repetição. Viajar é vivenciar, através de experiência sensual, lugares diferentes. Livre-docente em Lazer e Turismo pela ECA/USP, Trigo, utilizando fontes primárias de relatos de viajantes desde a Antiguidade até o tempo atual dos blogs e facebook, se espalha em narrativas com acuidade de observador turismólogo apaixonado por filosofia, literatura, história e antropologia. No aforismo de Plotino (tradutor de Patão no alvorecer da era cristã), “o olho não vê o que o espírito não sabe”, o autor define o pressuposto básico do livro. Eis a diferença entre turista e viajante: o turista conta o que conheceu; o viajante o que reconheceu.

O escritor é um viajante e cada livro narra suas andanças por lugares vividos ou imaginados. Seguimos com o propósito de desenhar em palavras o cenário de dois livros escolhidos para apresentar Sevilha: A História do Olho, novela erótica escrita em 1927 por Georges Bataille e; O Burlador de Sevilha, publicado em 1630 como peça teatral e autoria atribuída a Tirso de Molina (pseudônimo do Frei Gabriel Téllez, grande dramaturgo do Século do Ouro espanhol).

Na conferência Retornar à História, proferida em 1970 na Universidade de Keio (Japão), Michel Foucault citou o trabalho de pesquisa do célebre historiador Pierre Chaunu, Séville ET Atlantique, compêndio em 12 volumes publicados no final da década 1950. Assumindo a perspectiva de uma “história serial”, Foucault afirmou: “A história não é, portanto, uma duração; é uma multiplicidade de tempos que se emaranham e se envolvem uns nos outros. É preciso, portanto, substituir a velha noção de tempo pela noção de duração múltipla. É preciso multiplicar os tipos de acontecimentos como se multiplica os tipos de duração. Eis a mutação que está em vias de produzir atualmente nas disciplinas da história.”

A Torre do Ouro (atual Museu Naval) pode ser considerada exemplo do que Foucault chamou de “duração múltipla”. Do árabe Bury al Dahab (Torre Dourada), a parte superior da torre é revestida de azulejos dourados refletindo a luz solar mediterrânea. Sua exuberância pode ser vislumbrada a quilômetros de distância. Nesse lugar descarregava-se o ouro das Américas: é um obelisco eternizando a história do comércio marítimo e por extensão, ponto de ancoragem de uma multiplicidade de valores culturais. Os arquivos comerciais do porto de Sevilha no século 16 serviram para cartografar a emergência da cultura moderna na Europa: “tudo o que se relaciona com a entrada e saída dos navios, sua quantidade, sua carga, o preço de venda de suas mercadorias, o lugar de onde vinham e para onde iam. São todos esses dados que merecem atenção dos historiadores voltados ao trabalho da historia serial”.

Outro símbolo da grandeza histórica de Sevilha é a Torre La Giralda. Edificada no inicio do século 12 como minarete para a mesquita muçulmana, possui decoração em ladrilho e, do alto de 93 metros, pode-se apreciar uma belíssima vista panorâmica da cidade. As 35 rampas (não há escadaria) serviam para o muezim subir a cavalo e conclamar os muçulmanos às orações. Em 1558, com a hegemonia política dos reis católicos e, com o enriquecimento impulsionado pelo ouro das Américas, as autoridades eclesiásticas decidiram edificar um novo arremate para que La Giralda simbolizasse o poder cristão. Substituíram as esferas de bronze por um novo campanário coroado por uma estátua de bronze em forma de cata-vento (giraldillo, de onde o nome da torre). Bela metáfora: pelo porto de Sevilha novos ventos impulsionaram a revolução

cultural moderna na Europa. Não é sem motivo que foi nesta cidade o cenário do surgimento

do primeiro mito moderno: Don Juan, o burlador de Sevilha.

in: série “livros e lugares” – Caderno Cultura do Jornal de Piracicaba,23/fev/2014

ilustração: erasmo