Na edição anterior da Arraso iniciei a narrativa do amor como a paixão por excelência. Os gregos designavam páthos o estado de transbordamento de emoções e sentimentos incontroláveis. O sujeito apaixonado encontra-se num estado afetivo de perturbação, transtorno e obscuridade afetando seu juízo crítico e consciente. Eros, o deus do amor foi representado na mitologia como o causador dos estados patológicos.
Destaquei o diálogo O Banquete de Platão como registro de nascimento do Amor (Eros). Sócrates contou que ouviu da sacerdotisa Diotima a seguinte narrativa: por ocasião de uma festa para comemorar o nascimento de Afrodite, Póros se embriagou do néctar dos deuses e adormeceu no jardim da morada de Zeus. Por ali perambulava Pênia, que em sua penúria, nutria a esperança de obter algumas sobras do festim. Ao ver o belo Póros adormecido, tomou a decisão num instante: desejou ter um filho com ele. Deitou-se ao seu lado e concebeu Eros, o deus do Amor. Desse modo, Eros é filho de Póros de Pênia. Póros significa passagem, caminho, via de comunicação, ponte, conduto; e também recurso, fartura, excesso, transbordamento; e Pênia significa miséria, pobreza, penúria.
A condição filial faz do amor um herdeiro da fartura com a penúria. Assim, envolvidos pela narrativa mítica encontramos uma bela metáfora para designar os seres humanos: somos nós todos, seres falantes e por isso mesmo faltante, herdeiros do recurso do pai para enfrentarmos nossa condição mortal e da miséria da mãe para consolar nosso desamparo original. Tal como Eros, também nós viemos ao mundo pelo desejo materno (consciente ou não) que gera uma nova vida para transmitir um laço de paternidade. Casar é uma aposta erótica (apaixonante), gerando ou não descendência. Ser pai e ser mãe deveria ser uma decisão ética com consequências inalienáveis. Não existe ex-mãe ou ex-pai como existe ex-marido e ex-esposa.
O amor-paixão é erótico por sua potência criativa e criadora. Gera outro ser do que somos: transforma-nos em metamorfose ambulante. Desde o ato decisivo de viver conjugado (casamento) devemos estar abertos para que a transformação ocorra, pois ao permanecer fechado em nossa identidade egóica (supostamente permanente e imutável) fica excluído, foracluído, a potência erótica do amor. Ao nascer não podemos escolher com quem vamos viver. A maturidade psíquica requer exercícios de escolhas deliberadas. Escolher com quem você quer viver conjugado é uma conquista histórica da modernidade.
No livro O Amor e o Ocidente (publicado em 1938), Denis de Rougemont traçou a genealogia do amor-paixão (Eros) a partir do mito de Tristão e Isolda. Para o autor este romance contém os ingredientes fundamentais para um catálogo das paixões. No final da Idade Média, os trovadores fizeram do amor o nobre exercício de retórica para cantar em versos e prosas a abundância e a penúria do estado amoroso (apaixonamento). Em torno da figura da Dama, os cavaleiros celebravam as conquistas e adquiriam forças para conquistar a mais sublime das batalhas: ser o objeto amado de uma mulher; fazer desta mulher a mãe de seus filhos. Sua descendência e imortalidade seriam conquistadas ao conquistar o coração de uma Dama.
Sigmund Freud, o inventor da psicanálise, era um apaixonado leitor dos romances de cavalaria onde o amor cortês foi registrado e documentado. Esta matriz literária nos instiga a pensar a condição materna como uma função de transmissão da linguagem: a senha de entrada no mundo simbólico. É tão somente por isso que nomeamos a nossa língua como materna.
Jacques Lacan, o seguidor de Freud, cunhou um belo aforismo: “Amar é dar o que não se tem”. Ser mãe é dar o que não se tem: um desejo que só pode se constituir como falta. Em nome do desejo de ser mãe uma mulher passa adiante a relação ancestral com a linguagem: pela língua materna nos tornamos humano, demasiado humano. E, nessa perspectiva, podemos conceber o amor da mãe como afirmação de um compromisso com aquele nomeado como pai e abre a possibilidade de um outro exercer a função paterna.
Qual o lugar do pai na gestação? Presença de uma ausência. Ele está ali para assegurar que a gravidez seja significada para além de sua dimensão biológica. Isso porque, reduzir a gestação às mudanças orgânicas que uma mulher vivencia em seu real do corpo é mitigar por demais toda a dimensão simbólica e, por isso mesmo, subjetiva que está em jogo na gestação e criação de um novo ser. Uma mulher só se constitui como mãe (função materna) ao convocar um homem como referente de seu desejo. Um homem só é pai porque uma mulher o nomeia como tal: a língua materna do amor.
Assim, podemos analisar situações sintomáticas em que a mulher exclui o homem da gravidez, relegando-o a condição de alguém que não sabe o que é ser mãe. É verdade: um homem, por mais envolvimento que tenha, não pode imaginar as diferentes sensações que a mulher vivencia no período de gestação. Por isso mesmo, cabe a ela convocá-lo, pela inclusão, a gestar a criança que desejaram trazer ao mundo. O amor da mãe é o pai de seu filho. Com um olhar dirigido a esse homem que ela tornou pai poderá inscrevê-lo numa história que ambos começarão escrever. Do mesmo modo que a mãe faz o pai, o pai assegura um lugar para a mãe no exercício do amor.
Quanto mais a mãe demonstra seu amor ao pai de seu filho, tanto mais o pai estará presente em sua condição de objeto de desejo. As situações de ciúmes que muitas vezes se ouve nas queixas dos pais são correlatas da exclusão que sofrem por serem destituídos do lugar que ocupavam junto ao desejo da mulher. Um filho jamais poderá obturar a falta da condição desejante de uma mulher. Se por ventura isso ocorrer, e ocorre com mais frequência do que supomos, o homem estará lançado à própria sorte e o amor que conduziu a decisão de ter um filho ficará restrito à penúria das crises conjugais decorrentes do nascimento.
É bem mais interessante – e por isso mesmo ético – que o amor da mãe seja sempre o homem que ela fez pai. Desse modo, na língua materna do amor transmitido ao filho que gerou, o pai estará incluído. Garantia fundamental para o filho possa experimentar o amor em sua dupla constituição: presença e ausência. Báscula nevrálgica da dimensão simbólica: presença de uma ausência. Eros, filho da fartura com a penúria.
Como ensinou Platão: “Sendo o Amor sempre pobre, duro, seco, descalço e sem lar, deitando-se ao abrigo, às portas e nos caminhos, porque tem a natureza da mãe. Do pai herdou a beleza, a coragem, a decisão enérgica, caçador terrível, ávido de sabedoria e cheio de recursos a filosofar como um mago, feiticeiro e sofista. E não é nem mortal nem imortal; no mesmo dia ele germina e morre para voltar a renascer. Ele esta entre a sabedoria e ignorância: é um daimon (mediador)”.
fonte: Revista ARRASO / Noivas – Ano 6, nº 37, 2014 – Publicação do Jornal de Piracicaba
ilustração: Erasmo Spadotto