In memorian a Paco de Lucía e sua paixão flamenca
A Catedral de Sevilha é uma orgia visual: o olho é inundado com uma polifonia de imagens, cores e formas. Construída sobre a mesquita maior almohade do século 9, a Catedral conservou de seu passado muçulmano o Patio de los Naranjos (pátio das laranjas) onde os fiéis de Allah lavavam, na fonte central, as mãos e os pés antes das orações. Com ascensão dos reis católicos ao poder político, o cristianismo tornou-se a força hegemônica outrora exercida pela cultura islâmica. A mesquita se transformou num dos mais belos templos cristão.
O arquiteto Alonso Martinez assumiu a direção do projeto de reconstrução da Catedral em 1401. Conta-se que no ato de decisão para execução do trabalho, o Cabido dos Cônegos teria afirmado: “Façamos uma obra tão grandiosa para que nossos descendentes nos considerem uns loucos”. De fato, a suntuosidade da obra é uma loucura. O edifício é o maior templo gótico do mundo e o 3º templo da cristandade. Cinco naves convergindo para um retábulo com 18m de altura e figuras esculpidas em mais de mil peças com cenas do Antigo e Novo Testamento. Um emaranhado de esculturas douradas com o ouro das Américas.
Nas capelas laterais encontram-se um dos maiores tesouros artísticos da cultura ocidental. Oitenta vidraças flamencas do século 16 ornamentam, em reflexos multicores, os objetos decorativos de cada capela. A Capela Real é dedicada em louvor e veneração a Nuestra Señora de los Reys, padroeira de Sevilha. A Catedral abriga também o mausoléu, construído em 1890, no qual estão depositados os restos mortais de Cristovão Colombo,transladado da ilha de Cuba. Quatro heraldos (representando os reinos de Castilla, Léon, Aragón y Navarra) carregam nos ombros o esquife do grande herói espanhol, o descobridor da América.
Outro lugar determinante na experiência literária de Sevilha é a Plaza de Toros de la Real Maestranza: cenário recorrente no imaginário andaluz (realmaestranza.com). É uma das mais belas e antigas arenas de touros e remonta a tempos imemoriais.Um passeio pelo Museu Taurino permite compreender a paixão andaluza pelas touradas: cartazes históricos, quadros e os paramentos dos campeões Joselito e Belmonte(citado na novela erótica A História do Olho), além de uma capa pintada por Pablo Picasso. Os torneios (touradas) ocorrem no início do verão e continuam com a tradição cultural milenar — a despeito da patrulha e condenação dos moralistas politicamente corretos da atualidade.
A arena com arcos romanos abriga até 14 mil espectadores e sua forma definitiva ocorreu em 1881. Antes do século 19, não havia a figura do toureiro (matador) em solo, a pé. O desafiador do touro era um toureiro a cavalo:o cavaleiro de touros. A Escola de Touromaquia de Sevilha foi criada para ensinar a arte de tourear cara a cara: a força bruta do animal e a bravura de um homem. Os ornamentos na vestimenta, a capa e espada servirão ao matador como instrumento para exercitar sua arte: a touromaquia. A coragem do toureiro é posta à prova publicamente: os olhos dos expectadores, seduzidos pelo balé da morte, ficam na torcida pelo herói. Vencer um touro selvagem é a encarnação de um ato de heroísmo: desafiar a morte — olhando-a nos olhos do adversário.
Enquanto ouvia a simpática guia de visitação na arena de touros, minha imaginação vagava na cena final da ópera Carmem (a cigana sedutora de Sevilha) e na cena do livro A História do Olho onde há descrição de um toureiro e uma tese literária (a literatura como touromaquia):“
Granero distinguia-se de outros matadores pelo fato de não ter, de forma alguma, a aparência de um carniceiro, mas antes a de um príncipe encantado, muito viril, perfeitamente esbelto. A capa de um vermelho vivo, a espada brilhando ao sol, diante do touro agonizante cujo pelo continua fumegando, deixando escorrer sangue e suor, completam a metamorfose e realçam o aspecto fascinante do jogo”. No bailado do toureiro, o público realiza a clássica catarse: enfrentar a morte; desafiá-la para um tango vamos dizer assim. A luta infinita entre Eros (o amor) e Tanatos (a morte). É deste aspecto fascinante do jogo (a tourada) que Bataille formulou suas principais teses sobre o erotismo como experiência humana do sagrado (tema para o próximo domingo).
Sevilha é o cenário do primeiro exercício de escrita literária do jovem Georges Bataille, até então um desconhecido funcionário da Biblioteca Nacional da França. Incentivado por seu psicanalista, Adrien Borel, a escrever suas fantasias sexuais e obsessões de infância, Bataille redigiu em meados de 1927 A História do Olho como forma de tratamento dos sintomas de profunda depressão e excitação extrema. Se fosse hoje, seria rapidamente etiquetado com o diagnóstico de “transtorno bipolar”. No entanto, sensível ao desejo latente do jovem angustiado, Borel utilizou o ato de escrever como um recurso de tratamento: dar vazão, pela escrita, aos fantasmas que habitavam as obsessões com a imagem infantil de um pai cego e paralítico, objeto de seu mais intenso e sincero amor.
in: série “livros e lugares” – Caderno Cultura do Jornal de Piracicaba,02/mar/2014
ilustração: erasmo