A criança do psicanalista

Revista Essaim, nº 34, 2015

“A criança do psicanalista”

 Tradução: Marta Togni Ferreira

A concepção do que é uma criança e seu estatuto na sociedade e na família evoluíram no decorrer do tempo. Desde seu início, a psicanálise desempenhou um papel nessa evolução. Precisar as consequências daí decorrentes nos interessa, ainda que seja apenas para saber em quê os ideais de uma sociedade marcada pela psicanálise agem em retorno sobre sua prática, notadamente sobre a prática da psicanálise com crianças. Particularmente com estas, a psicanálise corre o risco de se impregnar de teorias desenvolvimentistas, médicas e educativas, de normatizações de toda espécie; e nisso, perder de vista que não há psicanálise da criança, mas uma psicanálise de alguém com um sujeito.

A qualificação como criança representa uma identidade que tampona o vazio do sujeito, definido em sua relação ao Outro como representado por um significante para outro significante. A sutura do sujeito pela identidade “criança” (ou outra) é fonte de desvios nas abordagens clínicas, seja nas instituições, seja na prática liberal. Há sempre o risco de confundir o registro lógico da alienação e separação do sujeito ao Outro com as representações na realidade. Por isso, se faz necessário manter o debate.

A psicanálise com crianças comporta um certo número de particularidades, das quais uma merece ser destacada: ela apela, de maneira lógica, a um terceiro na cura de uma criança, em geral, os pais. Essa lógica de intervenção do terceiro, que a psicanálise de adultos exclui rigorosamente, foi pouco teorizada pelos próprios psicanalistas.

Esse apelo ao terceiro parental não implica uma visada educativa ou normatizadora, como propôs Anna Freud. Ela é a possibilidade oferecida à criança e ao terceiro, nesse work in progress, de apreender alguma coisa do lugar do desejo e do gozo. E assim, desde o início de sua existência, deixa supor aí os efeitos de só-depois.

Essa última observação, por si só, poderia explicar o fracasso radical da psicanálise, selvagem ou “oficial” como foi o caso de Freud e Melanie Klein, de pais “analistas” de seus próprios filhos. Nesse caso, os analistas confundiram o terceiro parental (em toda sua cegueira) e o sujeito suposto saber: os efeitos foram devastadores para as crianças cobaias.

O tema da criança do psicanalista não se limita nem de longe a essa última questão, ele engloba também a interrogação sobre o que é um sujeito “criança” para o psicanalista, e a maneira pela qual, em sua prática e através de sua teoria, ele consente em escutá-lo.

Campinas, setembro de 2016.

 

(Tradução do Argumento que introduz os artigos da Revista Essaim, 34, L’enfant du psychanalyste, para utilização interna ao curso de psicanálise com crianças)

Essaim – Revue de Psychanalyse (nº 34 – 2015/1). Paris: Éditeur ERES.