O romance de Tristão e Isolda foi elevado a condição de mito fundador do amor moderno. Denis de Rougemont escreveu em 1938 o ensaio O Amor e o Ocidente para estabelecer os fundamentos do amor na modernidade nos romances de cavalaria no final do período medieval e neles encontrou as insígnias do chamado amor-cortês.
No prefácio à 1ª edição deixou clara sua posição: “Não quis enaltecer nem depreciar aquilo que Stendhal chamava de amor-paixão, mas tentei descrevê-lo como um fenômeno histórico de origem propriamente religiosa. Parti de um tipo de paixão tal como a vivem os ocidentais, de uma forma extrema, aparentemente excepcional: o mito de Tristão e Isolda. Precisamos desta referência fabulosa, deste exemplo brilhante e banal se quisermos compreender o sentido e a finalidade da paixão em nossas vidas”.
Esta referência a um dos gênios das letras francesas é boa estratégia retórica pois indica com precisão seu interlocutor: Do Amor, publicado por Henry Beyle, em 1820. Adotando o pseudônimo Stendhal, Beyle narrou sua experiência do amor-paixão vivido com Matilde Dembrowski.
No prefácio a edição de 1826, escreveu: “Peço que não abra este livro o homem que não foi infeliz por causas imaginárias estranhas à vaidade. O livro que se segue explica simples, razoável e matematicamente, por assim dizer, os diversos sentimentos que se sucedem uns aos outros e cujo conjunto se chama a paixão do amor. Para seguir com interesse um exame filosófico do amor-paixão é preciso que haja no leitor algo além da inteligência; é absolutamente necessário que ele tenha visto o amor”.
Na bela metáfora: “O amor é um amontoado brilhante formado por milhares de estrelinhas, cada uma delas sendo, muitas vezes, uma nebulosa; semelhante a via láctea”. Concluiu: “todo esse prefácio foi escrito para anunciar que este livro tem a infelicidade de só pode ser compreendido por pessoas que encontraram tempo na vida para cometer loucuras em nome do amor”.
No segundo prefácio, em 1854, foi mais explícito: “Só escrevo para cem leitores, para os que são infelizes, amáveis, encantadores. Se você já foi infeliz na vida durante seis meses por amor, então pode ler este livro. Se você nunca foi infeliz no amor-paixão, se não sofreu os efeitos dessa fraqueza das almas fortes, então não se aproxime”.
A descrição sobre o nascimento do amor em Stendhal foi apropriada de maneira exemplar para os comentários sobre o trágico romance de cavalaria. “A história do amor-paixão, em todas as grandes literaturas, desde o século 13 até nossos dias, é a história da decadência do mito cortês na vida ‘profanada’. É a narrativa das tentativas cada vez mais desesperadas de Eros para substituir a transcendência mística por uma intensidade comovida. Mas, grandiloquentes ou lamuriosas, as figuras do discurso apaixonado, as ‘cores’ de sua retórica, nunca serão mais que exaltações de um crepúsculo, promessas de glória jamais cumpridas”.
O amor-paixão do mito foi descrito pela audaciosa pergunta do escritor: “Tristão ama Isolda? É amado por ela? Nada de humano parece aproximar nossos amantes. Tudo leva a crer que livremente jamais teriam escolhido um ao outro. Mas eles beberam o philtrum do amor, e eis a paixão”. A palavra philtrum designa bebida, poção, que faz nascer um estado de encantamento e ternura.
“Se ela me ama, é por causa do philtrum / Não posso dela separar-me / Nem ela de mim”. Assim fala Tristão. E Isolda depois dele: “Senhor, por Deus onipotente / Ele não me ama, nem eu a ele / Foi um philtrum que bebi / E ele também: esse foi nosso pecado”.
Amar o amor é sofrer os efeitos de um certo feitiço. Não é sem motivo que na iconografia Eros é representado na forma de cupido, provido de arco e flechas, para acertar os corações. Na ponta da flecha contém uma poção encantadora. Por isso, como disse o poeta: “quem ama nunca sabe o que ama; nem sabe porque ama e nem o que é amar”.
Fonte:
Revista Arraso / Noivas
Ano 8; nº 61; 1º semestre/2016
Ao Gato Preto Editora – Piracicaba/SP
Ilustração: Maria Luziano