A criança e o infantil

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Infantil, adjetivo que define o que é próprio à criança, designa também o que permanece, na idade adulta, como marcas, traços impressos de tudo o que foi vivido no tempo de criança. Estas marcas são, ao mesmo tempo, as características ontogênicas (vivências de um indivíduo, sua identidade somática e psíquica) e filogênicas (vivências da espécie humana na ordem cultural, a história da humanidade).

Criança substantiva o ser humano que vivencia uma temporalidade contada do nascimento à puberdade. Por derivação de sentido, identifica o que ainda não é adulto nem jovem. É aquele que suporta em seu corpo o infantil, vivencia experiências da infância.

Esta distinção é de suma importância para romper com a visão corrente que sustenta, nos discursos e práticas institucionais, os conceitos de criança e infantil meramente como sinônimos. A criança é e não é o infantil pois, como destaquei, o infantil permanece no adulto como inscrição de seu tempo de criança.

Ao adjetivar a sexualidade humana como infantil, Sigmund Freud, o inventor da psicanálise, se tornou protagonista de um duplo escândalo. Por um lado, o adulto não pode mais ser considerado um sujeito ideal que teria ultrapassado as etapas infantis de sua sexualidade: o infantil continua determinante na formação dos sintomas durante a vida adulta. Por outro lado, a sexualidade da criança, que empresta seu corpo à realização do sexual, possui dupla característica: é perversa e polimorfa, deslocando assim a sexualidade de qualquer finalidade adaptativa e instintiva.

Ao situar a sexualidade infantil como um elemento central da teoria e da prática da psicanálise, Freud rompeu com ideais da moral burguesa, secular e cristã, sobre a infância e o papel social da criança. Sua experiência clínica de tratamento do sofrimento psíquico ficou restrita a jovens e adultos. Coube a seus seguidores aplicar a técnica e a teoria psicanalítica no trabalho clínico com crianças.

Cada vez mais, as crianças são diagnosticadas com siglas e rótulos que identificam uma determinada patologia psíquica. As estatísticas demonstram o crescente número de crianças consumidoras de psicotrópico, substâncias psicoativas. As crianças desajustadas, inquietas e desatentas são identificadas, por exemplo, como portadoras de transtornos. Transtornados, os pais, as escolas e todo o entorno da criança procuram um ancoradouro nos discursos e práticas adaptativas.

A criança como objeto de vigilância e de tratamento fez sua aparição em meados do século 18 e avançou no século seguinte através do controle das manifestações sexuais da criança. Os tratados de psicopatologia sexual do período estabeleceram critérios científicos para a disciplina pedagógica do corpo da criança.

O conceito de desenvolvimento como processo temporal, trazido do discurso neurológico, fez da criança objeto de dupla normatividade: por um lado, seu desenvolvimento é comparado ao das outras crianças de sua idade e, por outro, ela deve atingir no futuro um ideal moral que se supõe no adulto.

Deste modo, os germes da doença mental do adulto se encontram no período da infância, o que justifica a estrita vigilância dos comportamentos da criança. De igual modo, a permanência de qualquer traço do infantil no adulto é designada como sinal de anormalidade.

Os pais e a família foram convocados nessa tarefa infinita de cuidar das crianças para que não se desviem dos ideais norteadores o que se espera delas no futuro. Para o bem e para o mal, a criança se tornou depositária do futuro do adulto.

Fonte:
Revista Arraso / Filhos
Ano 8; nº 60; 1º semestre/2016
Ao Gato Preto Editora – Piracicaba/SP
Ilustração: Maria Luziano