Nos rituais da passagem do tempo, as festas de fim de ano são invocadas para celebrar e reatualizar os laços afetivos familiares e de amizade. Confraternizar é renovar a esperança e o desejo de estar na companhia de quem reconhecemos a presença do amor.
Cultivar a amizade exige um trabalho preliminar: saber distinguir o amigo verdadeiro do bajulador, o falso. Este tema é recorrente na história da cultura desde as narrativas míticas, no pensamento filosófico e na literatura. Na atualidade, quando o valor da amizade é definido pela quantidade de seguidores que o indivíduo possui no facebook é conveniente resgatar o aspecto mínimo desta distinção.
Amizade é designada como um sentimento de grande afeição, apreço e reciprocidade. Sempre pareada com o amor, a amizade envolve relações entre os humanos como grupo social e foi objeto de inquietação ao longo da história. Ela tece laços entre membros de uma família, comunidade ou Estado. Quando relacionada aos graus de parentesco parece condicionada por consanguinidade e herança do nome. Neste caso, não dependem da escolha. Quando deliberada por exercício de liberdade individual, adquiri o estatuto de camaradagem e companheirismo.
Nos textos filosóficos que a tradição ocidental nos legou, o tema é abordado pelo elemento insidioso que subjaz à amizade: o bajulador, o lisonjeiro; o que se faz passar por amigo afim de angariar algum benefício, tirar proveito próprio. Qual critério permite reconhecer o verdadeiro amigo, distinguindo-o da figura do bajulador, do lisonjeiro? Observemos que a questão da verdade está no cerne do tema, pois há supostos amigos que acabam por se revelar inimigos. Saber distingui-los é fundamental.
Dentre os textos disponíveis, o tratado Sobre a Lisonja, escrito por Plutarco no século 1 de nossa era continua exemplar. Estabeleceu a tipologia das condutas e serviu como referência básica para o problema da distinção entre o amigo verdadeiro e as ações sórdidas do bajulador: o que alimenta nosso amor-próprio e nos conduz a sermos inimigos de nós mesmos.
Com a premissa: “a amizade deixa-nos facilmente cegos a respeito do que amamos”, Plutarco constatou que o “amor-próprio oferece à bajulação um vasto campo para nos atacar, e sob a aparência da amizade, dominar nossa confiança. Esse amor a si mesmo nos transforma em primeiro e maior dos bajuladores e facilita a entrada de estranhos, para obtermos deles os testemunhos e a aprovação da justa opinião que este amor-próprio tem de si mesmo”.
Depois de discorrer sobre as características próprias dos bajuladores, Plutarco retornou à premissa inicial: “é preciso arrancar do coração o amor-próprio e a boa opinião sobre nós mesmos, pois estes são nossos primeiros aduladores e abre a porta aos bajuladores estranhos, tornam-nos presas fáceis de seduzir”. A advertência do filósofo é de grande relevância para os tempos atuais. Pois, “ao considerarmos sempre nossas imperfeições, nossos defeitos e nossos vícios, sentiremos que temos necessidade, não de um bajulador que nos distribua elogios, mas de um amigo sincero que nos aponte os erros com franqueza”.
Neste ponto, o texto de Plutarco muda a direção argumentativa e caracteriza o amigo sincero, verdadeiro, como aquele que fala com franqueza. “Há poucos que tem a coragem de ser francos com seus amigos, que não procuram ao invés disso bajulá-los. E mais raro ainda aqueles que sabem empregar adequadamente a franqueza, não a utilizando com amargor e censuras. Pois, acontece com a franqueza mal administrada o mesmo que com certos remédios: ela aflige, atormenta inutilmente, e realiza dolorosamente o que a bajulação consegue com agrados. As censuras, assim como os elogios inoportunos, são sempre nocivas. É preciso que a franqueza seja temperada pela doçura”.
Boas festas na companhia dos verdadeiros amigos!
Fonte:
Revista Arraso / Festas
Ano 7; nº 58; 2º semestre/2015
Ao Gato Preto Editora – Piracicaba/SP
Ilustração: Maria Luziano