Há no Livro do Desassossego um jogo metonímico entre livro (objeto escrito) e livrar (verbo que nomeia atos de libertação). No livro, o poeta Fernando Pessoa criou o semi-heterônimo Bernardo Soares para se livrar do desassossego. O homem Pessoa transmitiu em cartas que o estado d’alma desassossegada lhe acometia no final do dia, ao anoitecer. O crepúsculo contém potência depressiva: o dia que se esvai no laranja aveludado do entardecer anunciando calada noite.
Ao mesmo tempo, o nome livro desloca seu campo de designação do objeto e passa para outro campo de significação: eu me livro. Livrar é sair do cativeiro, pôr-se em liberdade, libertar-se.
O poeta português escreveu o Livro do Desassossego para livrar-se dos efeitos crepusculares da hora da morte. O tempo em que o sacrossanto manto do sono põe o espírito liberto para sonhar e, assim, revigorar a máquina corporal ao despertar, a aurora. E, neste tempo entre o crepúsculo e a aurora, o poeta compôs a exuberante sinfonia em palavras (sono)lentas.
Do verbo desassossegar, o substantivo qualidade o estado d’alma desassossegada, agitada e em alvoroço. Inquietar-se, perder o sossego, perturbar-se. O Livro… produz no leitor um duplo efeito: por um lado, subtrai a pueril ideia da leitura como sossego para espírito e, por outro, lança o incauto num abismo, sem substrato metafísico. Mas, para além disto que desperta e dispersa, o autor estende a mão e conduz suavemente o leitor por uma senda: instaura atos de superação e libertação.
Na persona Bernardo Soares [ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa], Pessoa verteu maior brado contra os ideais metafísicos que definem a vida humana pelos fins, propósitos e intenções. Proclamou a inutilidade da arte como um antídoto a este modelo hegemônico de vida moderna; marcada pela identidade de consumidor de objetos.
Atribuiu ao sonho valor maior. Os sonhos são o desassossego da alma. Nossa condição anímica é inquieta: só a morte poderá aquietá-la. Desperta, a errante alma (psique) vagueia pelos objetos do mundo a nomear sensações; procura a tudo entender e controlar. Dormindo o corpo, ela produz imagens com enredos caleidoscópicos, os sonhos. É pelo sonho que o poeta interrogou a vida diurna. Nesta estratégia, certamente estava em companhia de Pedro Calderón de La Barca (A vida é sonho) e Sigmund Freud (A interpretação dos sonhos).
Numa carta de julho/1932, o poeta disse que “B.S. não é um heterônimo mas um personalidade literária”. Noutra, em janeiro/1935 (pouco antes de falecer): “o meu semi-heterônimo Bernardo Soares aparece sempre que estou cansado e sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterônimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Em B.S. sou eu menos o raciocínio e a afetividade”.
Na interpretação de Leyla Perrone-Moisés, organizadora da publicação pela Brasiliense, a mutilação do raciocínio e da afetividade “leva a crer que B.S., mais do que outra personalidade, era um estado psíquico de Pessoa: seu estado mais depressivo”.
Retornemos a definição: “Em B.S. sou eu menos o raciocínio e a afetividade”. Ele aparece, tomando posse do espírito do escritor, quando estava cansado e sonolento. Neste estado anímico se encontra “um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e inibição; aquela prosa (Livro do Desassossego) é um constante devaneio”. Na persona de Soares, o poeta escreveu em devaneios e pode vazar seu estado depressivo.
Na carta de outubro/1914 descreveu-se a um amigo: “o meu estado de espírito atual é de uma depressão profunda e calma. Estou há dias ao nível do Livro do Desassossego. E alguma coisa dessa obra tenho escrito”. Noutra (março/1916) ao poeta Mario de Sá Carneiro: “Estou hoje no fundo de uma depressão sem fundo. O absurdo da frase falará por mim. Estou num daqueles dias em que nunca tive futuro. Em dias assim sinto que sou uma criança triste em quem a vida bateu”.
Para além da curiosidade infantil de encontrar a identidade entre autor e obra, Bernardo Soares é a persona sonolenta de Pessoa. Em devaneios poéticos, o livro nos auxilia a livrar-nos do desassossego. Afinal, “tudo o que dorme é criança de novo. Entre matar quem dorme e matar uma criança não reconheço diferença nenhuma. Toda a vida é um sonho. Ninguém sabe o que faz, ninguém sabe o que quer, ninguém sabe o que sabe. Dormimos a vida, eternas crianças do Destino”.