Deixamos o poeta Goethe na Sicília, o filósofo Nietzsche em Sorrento e seguiremos nesta viagem ao sul da Itália na companhia do médico vienense Sigmund Freud e seu jovem amigo húngaro, Sándor Ferenczi. Em setembro de 1910 desembarcaram no porto de Gênova e de lá seguiram em outra embarcação até Palermo, a capital da ilha siciliana.
Freud tinha predileção em viajar. Nos tempos de juventude viajou para adquirir experiências e conhecimentos nas ciências e nas artes de vários países da Europa. Quando adulto, a viagem era a atividade de cultivo do ócio: tempo precioso na gestação e criação dos conceitos fundamentais de sua experiência clínica com pacientes psiconeuróticos. No período crepuscular de sua existência viajou para construir laços de trabalho, expandindo as fronteiras da psicanálise, sua obra monumental.
No livro As Cidades de Freud (Jorge Zahar Editor), Giancarlo Ricci, psicanalista milanês, realizou um amplo trabalho de pesquisa no conjunto das cartas e da obra freudiana, traçando o percurso de suas viagens desde a juventude em 1856 até o ato derradeiro em 1938, ao fugir com a família para Londres, pondo fim à humilhação sofrida pelos nazistas que ocuparam Viena. Itinerários, emblemas e horizontes de um viajante foi o subtítulo escolhido pelo autor para designar o caráter emblemático das viagens do criador da psicanálise.
Sobre a viagem à Sicília, destacou: “Talvez não seja por acaso que Freud, depois de ter ido para o oeste na viagem aos EUA, escolha no ano seguinte ir à Sicília, no coração do Mediterrâneo. A Sicília não é apenas um dos lugares mais representativos da Magna Grécia, mas a região que foi a encruzilhada de quase todas as civilizações. Entre os séculos 17 e 18, tornou-se uma das capitais mais significativas da cultura europeia”.
A hipótese do autor: a estadia na ilha foi o momento de retomar fôlego para empreitada que viria a seguir, a internacionalização da prática e teoria clínica, adjetivada psicanalítica, e as primeiras deserções no recém instituída Associação Psicanalítica Internacional.
Embora Ricci não tenha feito menção ao companheiro de Freud durante a viagem à Sicília, considero relevante incluí-lo para interpretar o elemento emblemático que estava em jogo. Para tanto, reconstruirei o percurso da viagem de 1910 através Correspondência Freud & Ferenczi. Farei um recuo à primeira viagem realizada em conjunto demonstrando a gênese desta amizade. O compêndio agrupa mais de 1200 cartas, cartões e telegramas, trocados entre 1908 a 1933.
Freud em Viena, Ferenczi em Budapeste: neste espaço de 250km de distância de uma cidade a outra, uma escrita intensa e em ebulição, produziu um dos maiores registros do ato de criação dos principais livros e artigos do inventor da psicanálise e a incansável colaboração do jovem discípulo húngaro na causa do inconsciente.
No primeiro encontro do jovem médico, contratado pelo serviço de saúde pública de Budapeste, com o autor do livro A Interpretação dos Sonhos, a admiração foi recíproca. Freud ficou encantado com sua vivacidade e sagacidade acolhendo-o ao seu núcleo familiar.
Após a visita em 18/01/1908, Ferenczi agradeceu “não apenas pelo fato de estar desejoso de um contato pessoal, mas também por esperar deste encontro muitos ensinamentos úteis e instrutivos”. O médico húngaro foi pioneiro em aplicar a técnica psicanalítica de tratamento em pacientes atendidos no serviço público. Seu engajamento integral na transmissão da teoria freudiana a um público de jovens médicos e sociólogos é memorável.
Ferenczi foi convidado para as férias de verão/1908 da família Freud em Berchtesgaden, região alpina no extremo sul da Alemanha. Numa carta, o patriarca do clã, declarou: “espero ansiosamente por nossa primeira viagem para conversarmos sobre diversos assuntos e pelo prazer de sua agradável companhia. Vou reservar sua hospedagem numa pensão ou hotel próximo da bela casa que alugamos para abrigar toda a família. Assim ficará mais fácil tê-lo em nossa mesa e em passeios pelas montanhas com meus garotos”.
A resposta de Budapeste veio certeira: “Poucas vezes aguardei com tanta ansiedade pelo período de férias como este ano. Agradeço imensamente o gentil convite. Já me imagino em passeio pelas montanhas bávaras e estou tão excitado quando seus diletos filhos. Será um prazer acompanha-los em excursões nas montanhas”.
Pouco antes da partida, Ferenczi enviou: “estou tão esgotado pelo trabalho do último ano que meu maior desejo agora é rever as belezas da paisagem montanhosa. Não é preciso repetir que espero nosso encontro com alegria redobrada”.
Livros e Lugares – Caderno de Domingo – Jornal de Piracicaba – 10/mai/2015