Pergunta enviada em março de 1932 pelo Partido Comunista Francês aos membros fundadores da Associação dos Escritores e Artistas Revolucionários, reunidos em assembleia em Paris. Georges Politzer, jovem filósofo húngaro, foi o emissário e relator. Seu registro é um documento histórico sobre engajamento artístico e intelectual nas lutas pela efetivação da revolução socialista e, ao mesmo tempo, um datado arquivo sobre a implantação do materialismo histórico (filosofia marxista) em solo francês.
Os militantes do movimento surrealista (escritores, pintores e cineastas) leram Freud, Marx e Nietzsche fora das regras acadêmicas. Cada um fez sua própria leitura e apropriação dos conceitos filosóficos desta trinca de pensadores alemão. Politzer foi genial na forma e no conteúdo. O relatório da assembleia é um marco na mudança de sua posição: após ingressar no PCF utilizou a matriz partidária do marxismo-leninista para combater a psicanálise inventada por Freud e praticada na Europa no início da década de 1930. Antes realizou o mais contundente elogio à subversiva invenção freudiana.
A pergunta é provocativa e não é extemporânea se levarmos em consideração o rescaldo do atual processo eleitoral brasileiro. De que lado estão os escritores e os artistas? Defendem a causa do proletariado ou estão servindo aos interesses da burguesia? Ainda é possível utilizar o conceito luta de classes, inventado por Marx, para interpretação dos acontecimentos históricos? O relatório de Politzer é bem apropriado para reinscrever a questão: para quem você (escritor, jornalista, blogueiro) escreve?
A pergunta enviada pelo PCF subentende a luta de classes como condição fundamental do capitalismo e força motriz de sua própria transformação: “é um ataque, não contra o escritor a quem é feita, mas contra a burguesia, que não deseja que essa pergunta seja feita”. Constatou Politzer: “Há, na Associação, um certo número dos nossos que estão convencidos da importância do marxismo e que desejam ser marxistas consequentes”. De igual modo, admitiu que também havia discordância dos membros contra aqueles que faziam, de suas diferenças com o marxismo, “máquinas de guerra contra o marxismo; os que alimentam campanhas antimarxistas, os que ajudam a burguesia a empreender sua cruzada contra o marxismo”. Esses, concluiu, “não são dos nossos; pertencem à burguesia e não tem nada a fazer na Associação.”
A pré-condição para ingressar na Associação era reconhecer a distinção de classe, saber operar a separação entre burguesia e proletariado e, tomar consciência de que lado se estava: “os intelectuais honestos, de um lado; e os lacaios da burguesia, do outro lado”. Era preciso declarar-se um “intelectual honesto”, isto é, comprometido com a causa revolucionária. A ferramenta (o martelo) para tal revolução foi construída por Marx e reinventada por Lênin.
Considerando o marxismo uma ciência, Politzer relatou um processo de inquisição no qual a camarada Edith Thomas estava sendo julgada por não sustentar o ponto de vista marxista. Durante o debate, a escritora fez a seguinte intervenção: “escrevo para liquidar meus conflitos psíquicos e não sociais”. Esta posição provocou a ira no sangue húngaro de Politzer e o debate pegou fogo sendo a camarada lançada na fogueira da ideologia burguesa.
A doutrina para a condenação partia do seguinte pressuposto: “o fato de escrever constitui um ato que tem, na sociedade, repercussões determinadas (legitimar o poder hegemônico ou lutar para transformá-lo). Existe esse fato e a consciência que escritor deve ter dele. Eis aí duas coisas diferentes”. Escrever é um ato social, a consciência desse ato determina o engajamento do escritor. “Todos os que escrevem em uma sociedade onde existem classes e, por consequência, para aquele que escreve em uma sociedade capitalista, deverá ter consciência para quem escrevem. Faça o que fizer, ele não poderá impedir que seu texto tenha uma ação social, e uma ação social que consiste em fortalecer uma e enfraquecer outra das duas classes em luta”.
Concluindo seu relatório, Politzer considerou que a pergunta remetida pelo PCF aos escritores e artistas demandava uma resposta nos seguintes termos: “A questão é saber como, e na conta de quem, ele (escritor) toma parte nela (na luta de classes); se ele representa o joguete inconsciente e mais ou menos aperfeiçoado de forças sociais que ignora, ou se representa a consciência de seu ato de escrever”.
A pergunta “significa antes de tudo: você sabe para quem escreve? Em seguida: as consequências sociais de seus escritos correspondem às intenções que o animam escrever? E, por esta razão, penso que devemos manter e repetir incansavelmente a pergunta: para quem você escreve?, e devemos inclusive responder no lugar daqueles que, por si próprios, não responderão”.
Livros e Lugares – Caderno de Domingo – Jornal de Piracicaba – 09/nov/2014 – Ilustração: Erasmo Spadotto