Admiração: a paixão do olhar

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O amor é a paixão predominante nos discursos sobre os afetos e está intrinsecamente vinculado ao ato de admiração envolvendo o prazer do olhar. Admiramos algo ou alguém pelo sentimento sublime de respeito e consideração causado em nós: só amamos o que formos capazes de admirar. A emoção que a admiração desperta leva ao apaixonamento.

Por reconhecer em alguém um valor que nos faz contemplar nossa própria imagem invertida, amamos. Tal como um espelho, o outro representa o que desejamos ser ou somos e por isso este outro se torna objeto de contemplação, admiração. Não sem motivo há o ditado popular: o que os olhos não vêem o coração não sente. O amor passa pelo olhar, fonte primária da admiração: “quando eu te vejo eu desejo o teu desejo”, canta Caetano Veloso.

Admiração designa, no dicionário, forte sentimento de prazer diante de algo ou alguém que se considera incomum, extraordinário; é uma disposição emocional que traduz respeito, consideração pela pessoa ou coisa admirada; é a motivação afetiva que conduz o sujeito a querer estar próximo daquilo que admira, portanto do que ama.

A admiração cria e fortalece os laços familiares e de amizade. A formação e consolidação de um núcleo familiar dependem em grande medida da capacidade de admiração. Um casal sem admiração recíproca está fadado ao fracasso da relação. Os filhos que não admiram seus pais estão lançados à própria sorte, pois carecem de uma base afetiva que possa lhes dar o exercício efetivo da amorosidade. Admirar o pai, a mãe, os amigos, implica reconhecer neles um valor que será extensivo na formação do sujeito falante e desejante. Por isso, o exemplo que os pais podem oferecer aos filhos é a admiração que um tem pelo outro. A rivalidade conjugal rompe a possibilidade dos filhos encontrarem o amor pela admiração: a paixão do olhar.

O amor dos pais torna os filhos aptos para amar. Isso porque, o amor (como qualquer outro afeto) passa pelo processo de aprendizagem imitativa e social, culturalmente determinado. Ninguém nasce sabendo amar ou odiar: as paixões não são inatas, são adquiridas. E, se adquirimos a capacidade de amar, é pelo olhar que se inicia a longa e ininterrupta jornada de o bicho falante para se diferenciar do outro e, desta diferenciação, ser capaz de amar o outro como diferente de si mesmo.

A criança faz sua entrada no mundo marcada pelo olhar da mãe e nela reconhece seu próprio ser. Na presença da figura paterna (o terceiro) o infans (aquele que ainda não fala) poderá separar-se do estado fusional com a mãe e olhar, pelo distanciamento (ad-mirar), o objeto com o qual estava identificada como diferente de si. Por isso, admirar (olhar com distanciamento, com diferenciação) é a primeira condição para que o sujeito possa reconhecer o outro como diferente de si mesmo.

No catálogo das paixões, construído por René Descartes, a admiração aparece como a primeira paixão. No livro, As Paixões da Alma (1649), o filósofo francês ordenou e enumerou as paixões primárias que fundamentam todas as demais que podemos identificar: a admiração, o amor, o ódio, o desejo, a alegria e a tristeza. “Quando o primeiro contato com algum objeto nos surpreende, e quando nós o julgamos novo, ou muito diferente do que até então conhecíamos, isso nos leva a admirá-lo e nos espantarmos com ele. Admiração é a primeira de todas as paixões; e ela não tem contrário. À admiração esta unida a estima ou desprezo, conforme seja a grandeza de um objeto ou sua pequenez. E podemos assim nos estimar ou nos desprezar a nós mesmos: daí provêem as paixões e, em seguida, os hábitos de grandeza ou de orgulho e de humildade ou de baixeza. A admiração é uma súbita surpresa da alma, que a leva a considerar com atenção os objetos que lhe parecem raros e extraordinários”.

A admiração dos filhos em relação aos pais não é um ato de submissão a eles: é a potência para ultrapassá-los, adquirindo autonomia afetiva e liberdade. Sigmund Freud, inventor da psicanálise, sensível a este aspecto escreveu um pequeno artigo, Romances Familiares dos Neuróticos (1908), apontando que o verdadeiro herói é aquele que supera a si mesmo. Os filhos podem superar (ir além) dos próprios pais, pela admiração.

Freud, partindo da premissa de que para crescer, o indivíduo precisa libertar-se da autoridade dos pais, evidencia que este é o gesto heróico mais doloroso, com consequências decisivas para a autonomia psíquica e política. Tal libertação é primordial: “Na verdade, todo o progresso da sociedade repousa sobre a oposição entre gerações sucessivas. Para a criança, os pais são a única fonte de autoridade e de conhecimento. O desejo mais intenso e mais importante da criança nesses primeiros anos é ser igual aos pais. Contudo, com o tempo, a criança vai descobrindo gradualmente que seu pai e sua mãe não são modelos ideais permanentes”.

Ao conhecer outros pais, as crianças “começam por em dúvida as qualidades extraordinárias e incomparáveis que atribuía aos seus. Qualquer descontentamento, contrariedade ou frustração é pretexto para começar a criticar os seus pais; para manter esta atitude crítica, utiliza seu novo conhecimento de que existem outros pais que em certos aspectos são preferíveis aos seus”. Desta rivalidade primeira pode derivar o desejo de ultrapassar a fantasia infantil e conquistar assim a libertação, tornando-se sujeito capaz de cuidar de si mesmo. Caso contrário, o indivíduo permanece alienado e capturado numa posição passiva: briga com os pais, mas não sai de casa e não desmama.

Há uma epidemia de adultecentes (adultos em idade cronológica e adolescentes em idade psíquica) nos dias de hoje. Estatísticas recentes apontam crescimento no número de jovens/adultos vivendo sob tutela financeira e moral dos pais. Passivos e submissos vivem a fantasia infantil do gozo pleno sem frustração ou privação. Tudo e todos existem para servir-lhes e seu narcisismo primário fica intocável. O infantilismo impera como posição psíquica determinante na atualidade: gozo pleno!

Do microcosmo familiar, Freud indicou o caminho de formações substitutivas no macrocosmo social: da autoridade dos pais deslizou para a autoridade religiosa e política. “Se examinarmos em detalhe o mais comum desses romances familiares, a substituição dos pais, ou só do pai, por pessoas (ou instituições) mais potentes, veremos em atuação a fantasia infantil primária. Na verdade, todo esse esforço para substituir o pai (ou a mãe) verdadeiro por um que lhe é superior nada mais é do que a expressão da saudade dos dias felizes do passado, quando o pai lhe parecia o mais nobre e o mais forte dos homens, e a mãe a mais linda e amável das mulheres”.

Superar a condição de objeto primário de amor requer trabalho árduo de ultrapassar a fantasia infantil de onipotência narcísica: ser o objeto de amor do outro. Olhar para o outro como diferente de si mesmo é condição para admiração: reconhecer no outro o valor como marca da distinção. Desviar o olhar do próprio umbigo é condição para admirar.

Fonte: Revista ARRASO / Filhos– Ano 6, nº 43, 2014 – Publicação do Jornal
de Piracicaba

ilustração: Maria Luziano