Zaratustra, o canto trágico de Nietzsche – 3

Zaratrusta 3O pensamento do eterno retorno, gênese do livro Assim Falou Zaratustra, fecundou o espírito de Nietzsche numa caminhada pelos bosques do lago Silvaplana, localizado no vale de Engadi na região do Alpes em Grisons (Suíça). Depois da viagem a Gênova na Itália, o filósofo viajante refugiou-se em Sils Maria (cidade à margem do lago) para revigorar sua debilidade física com o ar das montanhas.

Em carta, dirigida à sua mãe em julho de 1881, encontramos o relato sobre seu estado de saúde: “Não me julguem um depressivo. Os que conhecem minha dedicação à criação de meus livros sabem que, se não sou o mais feliz dos homens, sou o mais corajoso. Trago sobre mim algo que pesa mais do que minha falta de saúde e, apesar de tudo, consigo cuidar-me e, neste momento, meu aspecto é excelente. A minha musculatura, desenvolvida por contínuas caminhadas, é quase a de um soldado e meu sistema nervoso causa-me admiração”.

No mês seguinte, escreveu ao amigo Peter Gast: “O sol ilumina as montanhas e os bosques e tudo se torna mais tranqüilo e silencioso. No meu horizonte surgem idéias jamais concebidas. A minha sensibilidade é intensa e em meus passeios solitários vou cantando, chorando e delirando repleto de uma nova visão que veio até mim antes de qualquer outro homem”. No final do verão, retornou à Génova e “tive o prazer de conhecer a excelente ópera Carmem de Georges Bizet, que nos deixa a impressão de engenho, força e comoção, como uma novela de Mérimée. Bizet é um talento nitidamente francês na ópera-cômica, não desorientado por Richard Wagner”.

De Rapallo, região portuária da Ligúria, província de Gênova, Nietzsche escreveu (fev/1883), novamente a Peter Gast, anunciando o nascimento da primeira parte do Zaratustra: “É o melhor dos meus livros e com ele me libertei de uma pedra que pesava grandemente na minha alma. É o mais sério e ao mesmo tempo o mais alegre dos meus livros. Com ele entrei num novo círculo e no futuro serei acusado de louco. Embora seja ele o portador da mais forte saúde que já pude viver”.

Os indicativos de lugares e estados de espírito são elementos de grande importância para o leitor do Zaratustra. Tudo nele transborda a mais decisiva alegria afirmativa da vida como ela é. O encontro com a ópera Carmem em Gênova e o ar das montanhas de Sils Maria compõem o contexto existencial para a escrita dos cantos de Zaratustra.

No Prólogo do Zaratustra encontramos o cenário e a proclamação primeira: “Eu vos ensino o super-homem. O homem é algo que deve ser superado. O super-homem é o sentido da terra. Eu vos imploro, irmãos, permanecei fiéis à terra e não acrediteis nos que vos falam de esperanças ultraterrenas! Eles envenenam a vida com a crença de uma outra vida além da morte. São desprezadores da vida, moribundos que a si mesmos envenenaram, e dos quais a terra esta cansada: que partam então para a outra vida que consideram melhor que esta”. A mensagem é dirigida a todos que negam a vida presente em nome de uma vida futura. Os pregadores do niilismo reativo e ressentido que negam o valor da vida terrena em prol de uma vida eterna depois da morte. O super-homem é a superação do homem cristão e ao mesmo tempo do homem moderno que acredita na soberania da razão cientificista como forma de melhoramento da vida através da ordem e do progresso.

O cenário do primeiro anúncio é digno de uma ópera dramática: “Aos trinta anos de idade, Zaratustra deixou sua pátria e o lago de sua pátria e foi para as montanhas. Ali gozou do seu espírito e da solidão, e durante dez anos não se cansou. Mas enfim seu coração mudou – e um dia ele se levantou com a aurora, foi diante do sol e assim lhe falou: ó grande astro! Que seria de tua felicidade, se não tivesses aqueles que ilumina?”. Após a saudação ao sol, Zaratustra decidiu descer e comunicar seu ensinamento: o super-homem, a vontade de poder e o eterno retorno do mesmo.

O anúncio do super-homem é realizado junto ao povo na praça do mercado. Esta metáfora clarifica a intenção inicial de Zaratustra: falar para o homem comum. O caráter didático do anúncio logo cairá por completa incompreensão daqueles que escutam, pois o povo ridiculariza e riem, falam alto, interrompendo o profeta que, com certo lamento, constata: “Eles não me compreendem, não sou a boca para esses ouvidos”.

De todo o Prólogo, o hino em louvor ao homem/mulher capaz de superar a si mesmo é, para mim, o mais belo: “O homem é uma corda, atada entre o animal e o super-homem – uma corda sobre o abismo. A grandeza do homem é ele ser uma ponte e não uma meta: o que pode ser amado no homem é ele ser uma passagem e um ocaso. Amo os que vivem apenas para desaparecer, para anular-se, pois são os que ultrapassam. Amo aquele que faz de sua virtude seu pendor e sua fatalidade. Amo aquele que não quer ter virtudes demais. Uma virtude é mais virtude do que duas. Amo aquele cuja alma esbanja a si mesma, que não quer gratidão e não devolve: pois ele sempre doa e não quer guardar. Amo aquele que lança à frente dos seus atos palavras de ouro e faz sempre mais do que promete. Amo aquele cuja alma transborda de cheia, de modo que esquece a si próprio e todas as coisas estão nele. Amo aquele de espírito livre e coração livre: assim, sua cabeça não passa de entranhas do seu coração”.

Livros e Lugares – Caderno de Domingo – Jornal de Piracicaba – 21/set/2014 – Ilustração: Erasmo Spadotto