No luxuriante salão de espelhos do Palácio de Versalhes, local de grandiosas festas oferecidas pelo rei Luis 14 para impressionar seus adversários, foi assinado o tratado de paz encerrando oficialmente a 1ª Guerra Mundial em 1919. A escolha do palácio é simbólica, pois a França tornou-se o alvo das maiores atrocidades cometidas pelas tropas alemãs. Os países aliados formaram a Liga das Nações imputando à República de Weimar a responsabilidade pela guerra e como sanção a perda de grande parte de seu território (principalmente Áustria e Hungria) e indenização de 33 milhões de dólares pelos prejuízos causados.
A humilhação política e destruição econômica da Alemanha prepararam o ninho para serpente da ideologia nazista propagada por Adolf Hitler. No filme O Ovo da Serpente (1977) o cineasta Igmar Bergman retratou, com minuciosa pesquisa historiográfica, as precondições que levaram a eclosão da 2ª Guerra Mundial. Nesse contundente registro cinematográfico do período, um verdadeiro tratado sobre a emergência do monstruoso movimento anti-semita que levou a construção dos campos de concentração e extermínio de milhões de judeus numa carnificina sem igual na história.
Num intermezzo de duas décadas, a histórica cultura européia viveu sob o signo do terror que poderia advir da Alemanha. E o revide começou por pequenos atos contra os bens culturais identificados como produto judeu. Em 1933 a teoria freudiana começou a ser banida do vocabulário da psiquiatria e da psicologia alemã: a psicanálise foi denominada “ciência judaica”. Sigmund Freud, assim como vários de seus colaboradores, era judeu não praticante. Os livros escritos por Freud, por serem considerados heresia e afronta à raça ariana, foram queimados em praça pública por jovens nazistas. Com ironia, Freud escreveu a um amigo: “Veja que progresso da civilização, em outros tempos teriam me levado à fogueira, hoje se contentam em queimar meus livros”.
Em setembro de 1935 Hitler conseguiu aprovar em Nuremberg as leis antijudaicas autorizando a Gestapo perseguir e destruir o patrimônio dos judeus. Invadir a Áustria para reconquistá-la ao domínio alemão era o projeto de vida de Hitler. Em Mein Kampf (a bíblia do nazismo) Hitler escreveu: “A união da Áustria à Alemanha deve ser considerada a tarefa suprema de nossas vidas, a ser alcançada por quaisquer meios possíveis. Os povos do mesmo sangue devem pertencer ao mesmo Reich”.
Aos 80 anos de idade, Freud estava em Viena e milhares de judeus como ele temiam que a invasão nazista potencializasse o ódio já disseminado nas relações sociais. O clima político favoreceu e as tropas alemãs atravessaram a fronteira em 12/03/1938 sendo acolhidas com entusiasmo pela população não judia. Em um mês, 90% da população austríaca usavam a suástica e aclamavam a chegada de Hitler em seu discurso de ocupação na Heldenplatz. Depois de 25 anos, após deixar Viena sem dinheiro nem perspectiva, ele voltava como herói conquistador que havia unificado o povo alemão sob a bandeira da ideologia da raça pura.
No livro A Fuga de Freud (Editora Record, 2010) David Cohen (escritor, cineasta e psicólogo inglês) reconstruiu os seis últimos anos de vida de Freud numa dramática saga do embate entre a família Freud e a tropa nazistas que invadiram Viena. Com rigorosa pesquisa, o autor descreveu a maneira como Freud, depois de muitas hesitações, conseguiu deixar Viena para não ser enviado aos campos de concentração. Duas irmãs de Freud não tiveram a mesma sorte. O livro é matéria prima para roteiro sobre as circunstâncias históricas que levaram a fuga da família Freud – num total de 16 parentes, empregados, sua biblioteca, coleção de esculturas e alguns móveis, dentre eles o célebre divã.
Freud teve seu patrimônio financeiro confiscados pelos nazistas e só conseguiu fugir por intervenção da embaixada dos EUA e da princesa Marie Bonaparte, sobrinha bisneta de Napoleão I. Antes de partir, a Gestapo exigiu a assinatura numa declaração de que ele havia sido tratado com cortesia. Novamente, a ironia de Freud se fez presente: “recomendo calorosamente a Gestapo a qualquer um”, escreveu.
O séquito de Freud seguiu para Londres no Orient Express, vindo de Istambul, no dia 03/06/1938. A primeira parada foi em Salzburgo e, atravessando a fronteira em território alemão fez a segunda parada em Munique. De lá seguiram até a fronteira com a França. Ao cruzarem o Reno, foi grande o alívio. Freud escreveu em seu diário: “passada a ponte do Reno, estávamos livres”. Ana (a filha caçula) abriu o vermute e brindaram a fuga.
Numa carta, Freud afirmou: “Aventuro-me, sob o impacto da guerra, a lembrar-lhe duas teses formuladas pela psicanálise e que, sem dúvida, contribuíram para sua impopularidade: os impulsos de agressividade e ódio da humanidade não desapareceram em qualquer de seus membros individuais, persiste recalcados no inconsciente à espera de oportunidade para se tornarem ativos; nossa racionalidade é débil e dependente de forças afetivas que ignora e todos nós somos compelidos a nos comportar de forma inteligente ou estúpida, de acordo com os imperativos emocionais recalcados. Se observamos o que esta acontecendo na presente guerra – as crueldades e injustiças – terá de admitir que a psicanálise esta correta em ambas”.
Livros e Lugares – Caderno de Domingo – Jornal de Piracicaba – 31/ago/2014 – Ilustração: Erasmo Spadotto