Do templo de São Sebastião, no tempo de minha infância no interior paulista, ao templo de Saint-Denis em Paris, no tempo de maturidade existencial, sigo com a proposta de narrar experiência estética: visitar templos em diferentes lugares.
Os templos contêm o tempo: memorial de cidades e história da arte. São verdadeiros museus a guardar marcas do passado e por isso, podem ser apreciados por seu valor estético. O templo eterniza a tensa relação entre o mundo dos deuses e o mundo dos homens. É o lugar onde essa relação encontra sua definição: o campo de forças entre o divino e o humano.
A clássica frase “Paris bem vale uma missa”, atribuída a Henrique 4º (de credo protestante ao assumir o reino da França em 1589), pode ser a síntese do que significa visitar templos na cidade luz. As dezenas de igrejas e capelas espalhadas pela cidade de Paris demonstram a história da monarquia católica e os embates políticos. Como um dos reinos cristãos mais importantes da Europa concentra tesouros arquitetônicos de estilo gótico medievo, passando pela estética renascentista e barroco clássico até o romantismo do 2º Império no século 19.
Visitar igrejas é adentrar num território em que o sagrado é o fundamento da ação política. A história da cidade pode ser narrada por suas igrejas que abrigam sepulturas de santos e relíquias sagradas, reis, príncipes, filósofos, escritores e artistas que colaboraram para ornamentar o ambiente devocional. Dentre os templos de Paris, o de minha predileção fica fora do circuito turístico fast-food. Geralmente, os mais visitados são a Catedral de Nôtre-Dame, a Sainte-Chapelle e a Sacré-Coeur em Montmartre. Sou viajante slow-food, pratico imersão no cotidiano dos lugares, uso transporte público, vou à feira livre, preparo as refeições e defino os roteiros de visitação.
Meu templo predileto em Paris fica no portal norte, numa região de subúrbio e é considerado o mais antigo da cidade: o primeiro exemplar do estilo gótico que se espalhou pela Europa cristã medieval. Clóvis derrotou os romanos no final do século 5 e instaurou o cristianismo como religião oficial do reino dos Francos. Nas cercanias de um cemitério galo-romano, edificou-se um pequeno Santuário sobre a sepultura de Saint-Denis, o primeiro bispo dos franceses, decapitado pelos romanos no ano 250. Reza a lenda que o bispo carregou a própria cabeça de Montmartre até o portal norte da cidade.
A Basílica Catedral de Saint-Denis, edificada a partir deste Santuário, tornou-se um centro de peregrinação. Ao redor surgiu um monastério beneditino e desde o século 7 passou por várias transformações arquitetônicas com o impulso inicial do rei Dagobert elegendo o bispo patrono e protetor dos monarcas e Santa Genoveva padroeira da cidade.
A história da Basílica se funde com a história da monarquia cristã: neste templo os reis foram coroados e os mausoléus das famílias reais lapidados para servir de abrigo aos restos mortais. São verdadeiros objetos de arte em diferentes estilos e proporções. Na cripta arqueológica encontram-se os vestígios dos primeiros edifícios.
Com o abade beneditino Suger, conselheiro real no século 12, a Basílica adquiriu novas técnicas arquitetônicas, rosáceas espetaculares, abside e abóboda sobre cruzeiro de ogivas. Esplendor de luz multicolorido inunda o templo a consagrar reis e rainhas pela eternidade. A abside foi projetada para ostentar as relíquias dos mártires. Entre as capelas centrais e a abside, um muro de luz contínuo divide o espaço. Só 5 dos vitrais da abside foram poupados da destruição pelos revolucionários franceses do final do século18. Nesta capela luminosa estão as efígies da monarquia Merovíngia – o rei Clóvis e seus filhos representando a gênese do cristianismo na França.
Dentre os monumentos funerários, destaco o do rei Dagobert I: seu corpo foi esculpido com a cabeça virada à direita, como se estivesse a olhar eternamente para as relíquias de Saint-Denis. As esculturas ilustram a lenda do eremita João que sonhou com a alma de Dagobert sendo arrancada dos demônios pela intervençãodo santo. Outro monumento de grande valor estético, contem os restos mortais de Henrique II e sua esposa Catarina de Médici (representantes da dinastia dos Valois): projetado por Primaticio e esculpido por Germain Pilon alternando em perfeita harmonia o mármore e o bronze. É um templo dentro do templo e marca da presença da arte italiana em solo francês. Os anjos, representam cada uma das virtudes cardeais e adornam o mausoléu de mármores multicoloridos que se intensificam com a luz da bela rosácea lateral do transepto norte.
A Basílica abriga atualmente mais de 70 efígies, cenotáfios e sepulturas, considerada a maior coleção da Europa. No passeio pela Basílica pode-se apreciar o avatar da arte funerária e das composições da arte renascentista associando a morte à esperança da ressurreição. Foi neste significante que minha sensação estética repousou: toda aquela monarquia ali sepultada, sob o manto infinito da luz, à espera da ressurreição.