O critério adotado por Richard Strauss na escolha dos cantos que compõem Assim Falou Zaratustra, publicado em 1885 por Friedrich Nietzsche, demonstra certa perspectiva e permite seguir o fio condutor da interpretação que fez do livro. Como destaquei nos artigos anteriores, no Poema Sinfônico para Grande Orquestra, composto em 1896, encontramos a sublime transformação da palavra em som. Além do Prólogo, escolheu oito cantos do personagem para musicar.
Sigo comentando cada um dos cantos na sequência escolhida por Strauss: Dos Transmundanos, Dos Grandes Acontecimentos, Das Paixões Alegres e Dolorosas, Dos Sepulcros, Da Ciência e o canto Do Convalescente que é o despertar de Zaratustra de um estado febril e torpor, acometido pelo mal-estar do espírito niilista (a vontade de nada e um nada de vontade). Considero este canto um marco divisor na composição trágica do livro Assim Falou Zaratustra.
Decepcionado e frustrado com falta de ouvintes para seus ensinamentos do super-homem e da vontade de poder, Zaratustra adoece. Cuidado por seus animais (a serpente e a águia) permaneceu sete dias deitado com os olhos pesados: “ponha-se novamente em pé, lhe diz a águia. Sai de tua caverna: o mundo te espera como um jardim, todas as coisas anseiam por ti Zaratustra. Vem, sai para anunciar. Canta e extravasa, cura tua alma com novas canções. Teus animais sabem: tu és e tens de tornar-te o mestre do eterno retorno – é esse agora o teu destino! Que tenhas de ser o primeiro a ensinar essa doutrina”.
Admitindo que o livro seja a inscrição do drama musical grego por excelência, Richard Strauss capturou com mestria a estrutura do livro de Nietzsche e os dois cantos que finalizam seu Poema Sinfônico bem o demonstram: o canto Da Dança e o Do Peregrino Noturno.
Zaratustra foi composto em quatro partes entre 1883 a 1885. O canto Da Dança (1ª parte) narra o encontro de Zaratustra com as ninfas que dançavam enquanto o deus Eros adormecia perto a uma fonte na floresta. Elas interrompem o bailado e o herói trágico logo se apresenta: “Não, não parem de dançar ó graciosas. Não sou um desmancha-prazer. Sou o advogado de Deus perante o Diabo. Como poderia eu, ó leves criaturas, ser inimigo das danças divinas? Eu próprio entoarei um canto para a sua dança”.
É um canto-diálogo de Zaratustra com a vida, personificada numa mulher que se apresenta sem pudor: “Sou apenas inconstante e selvagem e não sou virtuosa. Embora eu seja chamada por vós, homens, de ‘a profunda’, ou ‘a infiel’, ‘a eterna’, ‘a misteriosa’. E vós direi quem és: ‘Tu queres, desejas, amas, apenas por isso louvas a mim, a vida”. Nosso herói acolhe e responde: “Amo a vida sobretudo quando a detesto. É inconstante e teimosa; muitas vezes a vi morder os lábios e pentear-se a contrapelo. Talvez seja má ou falsa, e em tudo uma fêmea; mas, quando fala mal de si mesma, é então que me seduz”.
O último canto escolhido por Strauss, Do Peregrino Noturno, é o penúltimo canto da 4ª parte do livro. O Poema Sinfônico é iniciado com a aurora do Prólogo e finalizado com o crepúsculo e o anoitecer. Após o festim dos asnos, Zaratustra “conduziu o mais feio dos homens pela mão, para mostrar-lhe seu mundo noturno, a grande lua redonda e a prateada cachoeira próxima a sua caverna”. E, então, aconteceu a coisa mais espantosa daquele longo dia: o mais feio dos homens começou a gorgolejar e a bufar até conseguir se expressar: “eis que uma pergunta redonda e limpa lhe saltou pela boca, uma pergunta boa, clara e profunda, que fez agitar-se no peito o coração de cada um que o escutava”.
O mais feio dos homens proclama: “por causa desse dia estou feliz e certo de ter vivido, em um único dia, a vida inteira. Vale a pena viver na terra, meus amigos! Um só dia, uma só festa com Zaratustra me ensinou a amar a terra. ‘Foi isso – a vida?’, direi à morte: ‘Muito bem! Mais uma vez’”. O peregrino noturno é aquele que chega ao final do dia e no instante angustiante da noite, antes de adormecer, diz à morte: É isso a vida! Muito bem, quero-a de novo ao amanhecer. E dorme tranquilo pois foi capaz de dizer sim à vida no momento em que vai se entregar à morte breve: o sono!
Tão logo os homens superiores (os niilistas ressentidos) ouviram as palavras do mais feio dos homens, tomaram consciência da transformação que ocorreu e de quem havia lhes proporcionado a recuperação do espírito melancólico: “lançaram-se a Zaratustra, agradecendo, afagando, rendendo homenagem, beijando-lhe as mãos. Alguns riam, outros choravam. O velho adivinho dançava com prazer; e, ainda que estivesse cheio de vinho doce, como acreditam alguns narradores, é certo que estava ainda mais cheio de doce vida e havia declinado de todo o cansaço”.
Ao anoitecer é a hora de dizer sim à vida e caminhar como um peregrino seguindo as setas dos sonhos. Pois, “ó homens superiores, que vos parece? Sou um adivinho? Um sonhador? Um bêbado? Um interprete de sonhos? Um sino de meia-noite? Saibam todos: a dor é um prazer, a maldição também é uma benção, a noite também é um sol, um sábio também é um tolo. E, se um dia quisestes duas vezes o que houve uma vez, tudo de novo, tudo eternamente, tudo encadeado, emaranhado, enamorado. Então, durma tranquilo: sua vida está confirmada, aprovada, justificada”.
Livros e Lugares – Caderno de Domingo – Jornal de Piracicaba – 13/out/2014 – Ilustração: Erasmo Spadotto