No Poema Sinfônico para Grande Orquestra, homônimo ao livro Assim Falou Zaratustra, o compositor Richard Strauss escolheu, além do exuberante Prólogo, oito Cantos do personagem para musicar. Nietzsche compôs sua magistral tragédia em quatro partes ente 1883 a 1885. O critério adotado por Strauss na escolha dos Cantos demonstra certa perspectiva e permite seguir o fio condutor da interpretação que fez do livro.
Sigo comentando cada um dos Cantos escolhidos. No artigo anterior, destaquei que o movimento musical do Poema Sinfônico segue a temporalidade da aurora ao crepúsculo e neste tempo transcorrem os ensinamentos de Zaratustra. Após o Prólogo (aurora que desperta Zaratustra e o leva a decisão de sair de sua caverna no alto da montanha para ensinar o tempo do super-homem) Strauss inicia com o canto Dos Transmundanos e segue com o canto Dos Grandes Acontecimentos, Das Paixões Alegres e Dolorosas, Dos Sepulcros.
Na sequência, o canto Da Ciência (4ª parte) é o lugar em que Zaratustra enfrenta o feiticeiro, personagem que representa a vontade dos homens superiores. Enquanto Zaratustra anuncia a vontade de poder atuante no super-homem, o feiticeiro anuncia o melancólico demônio que iria possuir os homens superiores. Com seu canto, o feiticeiro não esconde o propósito: “A todos vós, sejam quais forem os nomes honrosos que vos deis, quer vos chameis ‘os espíritos livres’ ou ‘os homens verazes’, ou ‘os penitentes do espírito’, ou ‘os libertos das cadeias’, ou ‘os de grande anseio’. A todos vós, que sofreis do grande nojo tal como eu, para os quais o velho Deus morreu e nenhum novo Deus se acha em faixas num berço – a todos vós o meu espírito e demônio do feitiço são afeiçoados”.
Os homens superiores são designados como aqueles que apregoam a morte de Deus e de toda superstição sobrenatural, das crendices e argumentos míticos, da poesia e de atividades próprias da imaginação. Eles são os homens da ciência e confiam cegamente na veracidade dos fatos. Só a soberana razão pode julgar o que é verdadeiro e condenar tudo o mais como falso. Iluminados pelo brilho da inteligência os homens superiores são racionais, metódicos e, crentes nas leis da causalidade, pretendem controlar todos os elementos da natureza com a metodologia experimental. E, por extensão, o que chamam de natureza humana.
Neste canto, Zaratustra quebra o feitiço do demônio melancólico com uma lufada de ar das montanhas: “Assim cantou o feiticeiro; e todos os que ali estavam caíram inadvertidamente, como pássaros, na rede de sua astúcia e melancólica volúpia. Apenas o consciencioso do espírito não foi apanhado: ele tirou rapidamente a harpa das mãos do feiticeiro e gritou: ‘Ar! Deixai entrar ar puro! Deixai que Zaratustra entre!”
O canto Do Convalescente (3ª parte) é o despertar de Zaratustra de um estado febril e torpor acometido pelo espírito niilista (a vontade de nada e um nada de vontade). Decepcionado e frustrado com falta de ouvintes para seus ensinamentos do super-homem e da vontade de poder, Zaratustra adoece. Certa manhã, pouco tempo após seu retorno à caverna, ele pulou da cama como um louco, gritando com voz terrível. Seus animais (a serpente e a águia) correm para socorrê-lo e ouvem Zaratustra dizer: “de minha profundeza sobe o pensamento abismal! Eu sou teu galo e teu alvorecer, verme adormecido! De pé, de pé! Minha voz te despertará como o canto do galo! Eu, o advogado da vida, o advogado do sofrimento, o advogado do círculo – chamo a ti. Viva! Vem! Dá-me a mão e vou te arrancar deste estado de náusea, nojo pela vida”.
Cuidado por seus animais, por um longo período de sono profundo, Zaratustra desperta: “há sete dias estás assim deitado com os olhos pesados, ponha-se novamente em pé, sai de tua caverna: o mundo te espera como um jardim, todas as coisas anseiam por ti, dizem seus animais. Veio-te um novo conhecimento, amargo e pesado? Vem, sai para anunciar. Canta e extravasa, ó Zaratustra, cura tua alma com novas canções. Teus animais sabem: tu és e tens de tornar-te o mestre do eterno retorno – é esse agora o teu destino! Que tenhas de ser o primeiro a ensinar essa doutrina”.
Considero este canto um marco divisor na composição trágica do livro Assim Falou Zaratustra. Admitindo que o livro seja a inscrição do drama musical grego por excelência, Richard Strauss capturou com mestria a estrutura do livro de Nietzsche e os dois Cantos que finalizam seu Poema Sinfônico bem o demonstram: o canto Da Dança e o canto Do Peregrino Noturno.
Por limite, os comentários dos dois últimos ficarão para o próximo domingo. Ainda uma palavra sobre o eterno retorno (o novo, amargo e pesado, conhecimento): “Retornarei eternamente para esta mesma e idêntica vida, nas coisas maiores e também menores, para novamente ensinar aos homens o super-homem. Chegou a hora em que aquele que declina abençoa a si mesmo”. Convalescente, Zaratustra assumiu, novamente, sua vocação, seu destino, a seta de valor de sua existência: ser o mestre do eterno retorno.
Livros e Lugares – Caderno de Domingo – Jornal de Piracicaba – 05/out/2014 – Ilustração: Erasmo Spadotto