Vivemos a ditadura da felicidade

Psicanalista, filósofo e professor da Unimep (Universidade Metodista de Piracicaba) Márcio Mariguela, 51, chegou em Piracicaba há 18 anos. Campineiro, ele se encantou com o ar interiorano mantido ainda no município, com a vida comunitária, as pessoas sentadas nas ruas, crianças brincando ao ar livre, o clima de amizade da cidade cortada pelo rio. Às vésperas do lançamento do DSM-5, o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, usado mundialmente para diagnosticar e medicar pacientes, o psicanalista, com 20 anos de carreira, abre a polêmica e chama para discussão a questão da saúde mental, que hoje vive uma banalização com o uso indiscriminado de medicamentos psicotrópicos. Diagnósticos que vão desde a autoavaliação e automedicação por meio da internet, até a receita da vizinha, tudo devido à busca moderna pelo padrão ideal de felicidade imposto nos dias atuais.

O evento, intitulado Psicanálise, Psiquiatria e o DSM-5, acontece no dia 25 de maio, às 9h, no auditório do Arco Hotel Premium. As inscrições podem ser feitas no site www.psicanalise-dsm.net.br.

 Como começou sua carreira voltada à psicanálise?

A minha graduação é na área de filosofia e desde a graduação descobri a obra de Freud (Sigmund

Freud). Passei a me interessar pela obra do Freud e a partir da década de 80 eu comecei a fazer minha análise pessoal, com um psicanalista que veio do Rio de Janeiro para Campinas. Do percurso da minha análise pessoal, comecei a me envolver com os estudos de Jacques Lacan, que é um psicanalista francês da década de 1950, que instaurou na França um movimento de retorno a Freud e instaurou uma experiência clínica da psicanálise clínica, bastante diferenciada, em relação àquilo que era praticado até então em psicanálise. O Lacan foi o responsável por ler Freud com filosofia.

Ele começa a interpretar o Freud de outra forma e isso me interessou muito. Ingressei na Escola de

Psicanálise de Campinas para fazer a minha formação em psicanálise, em 1994, e comecei a ocupar a função de analista na clínica. De lá para cá venho atuando nesses dois campos, a psicanálise e a filosofia.

Qual é sua história com Piracicaba?

Eu vim para Piracicaba para ser professor do curso de filosofia, que estava iniciando na UNIMEP, no campus Centro, e assumi a disciplina filosofia da ciência, primeiramente, e depois filosofia contemporânea. Viajava de Campinas para cá e me mudei quando assumi a coordenação do curso de filosofia. Aí constituí minha vida aqui, comecei a minha experiência clínica em psicanálise em Piracicaba.

O senhor está coordenando aqui um debate sobre o DSM-5, o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Como será o evento?

Esse evento, que estamos chamando de diálogo público, é o resultado de um trabalho que venho desenvolvendo na Escola de Psicanálise de Campinas, com colegas que são médicos psiquiatras e também psicanalistas. Como vai acontecer em maio o lançamento mundial da 5ª Edição do DSM, eu convidei parceiros da Escola e também colegas psiquiatras e psicanalistas, para organizar um evento e conversarmos publicamente sobre o DSM-5. A origem, como aparece na história, porque ele chegou na quinta edição, está tudo atravessado por um embate em dois campos específicos que é a psiquiatria e a psicanálise. Isto posto, a gente admite que a psicanálise não é a psiquiatria e também não é psicologia. Você tem minimamente três campos do saber, que são distintos, mas fazem fronteiras entre eles, que é a psiquiatria, a psicanálise e a psicologia.

O que é o DSM?

O DSM é um manual produzido pela Associação Psiquiátrica Norte-Americana e ele vem se convertendo ao longo dos anos, desde 1954, que foi o primeiro manual. Ele vem sendo utilizado como um manual, um livro utilizado como critério e referência para todo o diagnóstico de transtornos mentais no campo da psiquiatria, primeiramente, e com incidências em outros campos, quer na psicologia, quer na psicanálise, e sobretudo naquilo que é o campo da mídia, que utiliza as categorias diagnósticas do DSM para falar sobre depressão, síndrome do pânico, déficit de atenção e hiperatividade. É importante ressaltar que esse manual é um manual estatístico que está sendo construído a partir de variantes estatísticas e toma-se o manual como parâmetro de diagnóstico.

Qual é o avanço do manual?

Ele aumenta significativamente o número de doenças mentais em relação ao DSM-4, que está vigente desde 1994. Em relação à edição anterior, o que a número cinco traz é primeiro um aumento significativo do número de doenças mentais. Aumenta os diagnósticos e esse aumento tem como consequência o aumento também de medicamentos disponíveis para o tratamento. Há uma crítica que se faz de interesses econômicos em jogo no manual, de conflitos de interesses, que é a indústria de psicofármacos. A indústria que produz medicamentos para tratar dessas doenças listadas, classificadas no manual, ela apoia financeiramente o manual. Quer dizer, o manual responde aos interesses da indústria de psicofármaco. Há uma espécie de casamento perfeito entre os diagnósticos das doenças e os medicamentos oferecidos pela indústria de psicofármacos.

O Brasil é um dos maiores consumidores de psicotrópicos do mundo, perde apenas para os Estados Unidos. Como o senhor vê a situação ultimamente?

O psicofármaco, que é o remédio usado para tratar dessas doenças mentais catalogadas pelo manual, serve no mercado como uma mercadoria como outra qualquer. Quanto mais a população é incentivada pelo desenvolvimento do capitalismo para o mercado de consumo, mais disponíveis são as ofertas para o que se chama o ideal de bem-estar, de felicidade, de saúde psíquica, etc. O problema disso não é o medicamento em si, é o uso abusivo que se faz do medicamento. Para

contar situações clínicas, uma mulher procura por atendimento, eu venho aqui porque tenho transtorno bipolar. Eu pergunto como a senhora chegou a este diagnóstico? E ela diz que pesquisou no Google e viu que tem. A pessoa pesquisa no “doutor Google” e se identifica com aquilo porque está vivendo uma determinada situação específica, ou porque está com uma angústia, ou porque está vivendo um luto, a perda de alguém querido, um problema na família, no trabalho. A pessoa

vai se identificar numa situação como essa sem nunca ter passado por qualquer médico ou diagnóstico. E eu pergunto se ela toma um medicamento e a paciente fala que usa por 10 anos e explica que compra pela internet. É um caso que não é único. As pessoas fazem o próprio diagnóstico, elas próprias compram o próprio medicamento, da mesma forma que compram um livro. O que é grave é o uso indiscriminado. Então, a gente tem avaliado que o DSM-5 vai aprofundar isso, na medida em que ele amplia o diagnóstico e, portanto oferece mais medicamentos, então a classe de psicotrópicos disponíveis no mercado é grande, mas o que muda não é o princípio ativo. O que muda são os nomes, os rótulos, as embalagens, que vêm sempre revestidos como uma novidade. A nossa sociedade está sendo conduzida cada vez mais ao consumo de psicotrópicos, sem uma avaliação mais séria dos efeitos colaterais que eles trazem, porque são drogas. Evidentemente drogas lícitas, mas que têm efeitos nocivos graves, como por exemplo, crianças em idade escolar fazem o uso de Ritalina. E os efeitos colaterais disso? Quando chegarem à adolescência vão apresentar problemas cardíacos sérios.

O novo DSM é bastante polêmico?

Muito polêmico, tanto que existe um movimento internacional, que surgiu na França e já ganhou vários países, com abaixo assinado, artigos de psiquiatras, psicólogos, psicanalistas, o movimento Stop DSM. A tentativa, o esforço de denunciar publicamente essa hegemonia do DSM. O médico que usa esse manual passa a ser apenas um prescritor de medicamentos.

Os tempos de hoje, as dificuldades dos dias atuais, trouxeram um aumento de doenças mentais, como a depressão, a síndrome do pânico e outras?

O sofrimento psíquico para a psicanálise diz respeito à história do sujeito. No campo do DSM isso está fora de questão. Você sofre porque tem uma disfunção neuroquímica cerebral, então toma um remédio que vai repor, por exemplo, a serotonina, o depressivo tem, por exemplo, um déficit de serotonina. Então, você toma um medicamento e vai repor e está resolvida a questão. Seria maravilhoso se assim o fosse, estaria resolvida a questão. Só que não é. Porque o sujeito toma o antidepressivo, mas não sai da depressão, então ele passa a ser um consumidor crônico de psicotrópico. O que importa é por que isso tem essa força atualmente, porque teríamos mais pessoas doentes, não, você tem mais categorias de diagnósticos e essa categoria tem uma identidade. Se o manual diz que o depressivo tem tais sintomas e eu tenho esses sintomas, então eu tenho depressão. O que aconteceu foi um excesso de categorias diagnósticas, não foi um aumento de doenças? Os tempos de hoje produzem muito mais tensão psíquica por conta das demandas sociais. Vivemos um tempo que é a ditadura da felicidade. Você tem que ser feliz, consumindo, viajando, tendo, tendo. Mas, tudo isso ainda não te faz feliz. Porque estamos vivendo e, enquanto vivos, temos que pagar um preço de estarmos vivos, que é a angústia. A angústia de ser mortal porque essa angústia não tem remédios, vai se inventando remédios para essa angústia, que é existencial. É uma ilusão acreditar que o remédio vai nos tirar do sofrimento psíquico. É uma ilusão que o mercado vende, que o discurso sustenta que o ser humano poderá se livrar do sofrimento psíquico.

Como o senhor avalia a questão da internação das pessoas doentes ou com transtornos mentais?

O problema da internação tem uma história. O movimento antimanicomial, desde os anos 60, 70, começou a desconstruir esse modelo de internação, que era um modelo de exclusão, era um modelo prisional. Então, o movimento antimanicomial lutou para que esse modelo de internação fosse desmontado, e de fato foi. No entanto, a questão permanece. Para onde enviar pessoas que estão em situações de surto, de crise, estão de fato precisando de uma internação. Hoje, o serviço público oferece pouquíssimas vagas. O SUS compra, por exemplo, vagas em clínicas particulares. Há um problema gravíssimo para quem precisa de internação.

Faltam políticas públicas na questão da saúde mental hoje?

Faltam investimentos, interesse político, em todo o campo da saúde, mas no campo da saúde psíquica é pior porque o Estado rapidamente se rende ao manual e adota como critério para estabelecer diagnóstico e tratamento. Engessa por causa disso qualquer possibilidade de trabalho que não seja por essa via medicamentosa.

A psicanálise seria a saída para as pessoas resolverem seus conflitos e não haver abuso dos medicamentos?

Hoje, amaior demanda de pacientes quetenho no consultório é de pacientesque já vêm rotulados e medicados,por diversas formas, desde oginecologista, o pediatra. Muitosnem sequer passaram por psiquiatras.Ele chega e já se apresentacomo portador de um transtornoe vem com uso de medicamentos.Cerca de 80% que vêm desse modonão precisaria do uso de medicamentos.Isso que é o uso abusivoque estou dizendo. Essas pessoasnão precisariam gastar com essesmedicamentos e sofrer os efeitoscolaterais que vão desde a obesidadeaté a impotência sexual. Entãovocê tem um problema a mais.

Como o senhor avalia a cidade ao longo destes anos?

O primeiro impacto que tive quando cheguei. Fiquei encantado em poder andar na rua e ver as crianças brincando, as pessoas sentadas nas ruas. Andava pelo bairro e as pessoas cumprimentavam. Essa vida interiorana onde as pessoas ocupam os espaços públicos, as ruas, as praças, os rios, o campus da ESALQ, isso me fascinou. Era o que eu queria para minha vida, um lugar onde as pessoas pudessem ocupar os espaços públicos. Mas, isso se deteriorou. As pessoas estão cada vez mais fechadas, enclausuradas, cercadas, trancadas e isso é um prejuízo imenso no que diz respeito ao sofrimento psíquico. As pessoas sofrem mais quanto mais isoladas elas são levadas a ficarem.

O senhor acha que isso ocorreu devido à falta de segurança ou a vida ficou mais corrida, agitada?

O crescimento exponencial da cidade, seja em número de carros, de condomínios. A cidade está se tornando uma metrópole no pior sentido da palavra e isso tem consequências no campo psíquico porque as pessoas perdem esse tipo de laço simbólico que a vida comunitária, a vida social, a vida do espaço público oferece. Então, esse isolamento das pessoas, esse fechamento tem efeitos colaterais na subjetividade, na maneira como as pessoas passam a sofrer e lidar com esse sofrimento de maneira individualista, que é eu e o medicamento. Antigamente, você estava mal, convidava um amigo para sair, ia bater papo com a vizinha, tinha um tipo de laço social que com o crescimento da cidade e, por consequência a insegurança, você vai tendo um fechamento cada vez maior. Acho esse fechamento muito grande. Não acho que o número de carros na rua seja sinônimo de progresso social. Para mim seria muito mais progresso social se tivesse um transporte público de qualidade.

Fonte: JP – 12/05/13 – Ângela Pessoa