Rememorar é também um ato de comemorar. Lembrar para não esquecer e assim transmitir às novas gerações as matrizes fundadoras de nossa civilização. Descrever a gênese do processo civilizatório faz parte de diferentes campos do saber. Desde as narrativas míticas passadas adiante pela história oral até as pesquisas etnográficas das ciências sociais (antropologia, história e sociologia) o trabalho de resgatar o passado e nele encontrar o sentido e significação para o presente é cada vez mais urgente e determinante para nossas perspectivas de futuro.
O futuro de nossa civilização depende do árduo e insistente trabalho de resgate de nosso passado individual e coletivo. O processo educativo consiste em preparar os jovens para realizações que tornem o futuro uma promessa e compromisso com o tempo presente e isso não se faz sem o cultivo do passado. “De onde viemos?” é condição para saber “para onde vamos?”; entre elas situa-se a inquietante “o que somos?”.
Ao concluir sua formação em medicina, Sigmund Freud iniciou sua prática clínica em Viena dedicando-se ao atendimento de pacientes que sofriam com sintomas sem causalidade orgânica. Eram denominados psiconeuróticos, pois relatavam dores no corpo sem que houvesse uma anomalia somática. Aos poucos, Freud percebeu que os sintomas neuróticos realizavam um processo conversivo: conflitos psíquicos não nomeados convertiam-se em dores corporais. Com certa regularidade, seus primeiros pacientes contavam lembranças traumáticas do passado. Assim surgiu a psicanálise: falar do passado, rememorar, tornou-se um modo de simbolização de sofrimentos que não havia (será que ainda há?) escuta por parte dos médicos em geral.
Da singularidade histórica de cada paciente, Freud foi tecendo uma teoria que pudesse justificar sua posição clínica. É desta posição que realizou um salto decisivo: da clínica individual para análise do processo civilizatório. Partindo da premissa de que o indivíduo repete em sua história (ontogênese) a própria história da civilização (filogênese), realizou o que muitos críticos chamaram de vôo de Ícaro. É neste contexto que iniciou um estudo investigativo publicado em 1914: Totem e Tabu. O primeiro livro onde Freud traçou a gênese do processo civilizatório para justificar o conflito psíquico que atua nos sofrimentos dos pacientes neuróticos, psicóticos e perversos.
A psicopatologia descrita pela psicanálise só pode ser compreendida ao ser remetida à própria história do processo civilizatório. A neurose é o preço que pagamos para viver em sociedade. Ninguém escapa desta dívida simbólica. Como não há ser humano fora da vida social, o processo de socialização produz, invariavelmente, seres doentes, pois não poderão viver livremente os seus impulsos desejantes. Todos, sem exceção, estão submetidos à lei (tabu) que interdita o livre curso das pulsões. Os sintomas psíquicos são representações totêmicas do tabu e como tal possuem um elemento universal que iguala a todos na condição humana.
Se a repressão das pulsões é condição essencial da civilização, o instinto gregário surgiu como unidade particular da união de componentes egoístas e eróticos. Deste fato inexorável, Freud concluiu que as relações entre as diversas formas de neurose/psicose e as formações culturais são determinantes para o tratamento psicanalítico. O estudo da psicologia das neuroses tornou-se pré-requisito para compreendermos a evolução histórica da cultura e, por extensão, do processo civilizatório.
“As neuroses mostram, por um lado, notáveis e profundas concordâncias com as grandes produções sociais que são a arte, a religião e a filosofia, e, por outro lado, aparecem como deformações delas. Pode-se arriscar a afirmação de que a histeria é uma caricatura de uma obra de arte, uma neurose obsessiva, a caricatura de uma religião, e um delírio paranóico, de um sistema filosófico. A diferenciação remonta, em última análise, ao fato de as neuroses serem formações associais; elas procuram obter, por meios privados, o que na sociedade surgiu mediante o trabalho coletivo”.
Comemorando o centenário desta obra fundadora, é lícito indagar a relevância da teoria freudiana para interpretar os fenômenos sociais de nossa atualidade. Pois, como nos advertiu com propriedade o célebre pensador da cultura que foi Freud: “do ponto de vista genético, a natureza associal da neurose resulta de sua tendência original de escapar de uma realidade insatisfatória, rumo a um prazeroso mundo de fantasia. O mundo real, evitado pelo neurótico, é governado pela sociedade dos homens e pelas instituições que eles criaram conjuntamente; dar as costas à realidade é, ao mesmo tempo, retirar-se da comunidade humana”. O conflito entre as pulsões e as exigências civilizatórias são irremediáveis.
“Totem e Tabu: gênese da civilização” – Caderno Cultura do Jornal de Piracicaba 01/jun/2014
ilustração: Erasmo Spadotto