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Melancolia do Bósforo
Nas águas profundas do canal de Bósforo atravessam cargueiros dos mares do Norte e do Sul. Lá onde o Oriente faz sua aurora: o canal corta a cidade de Istambul no extremo do Ocidente.
Istambul contempla o canal com a melancolia dos que se sabem em trânsito. Outrora Constantinopla, a Roma Oriental, conquistada pelo Império Bizantino, conquistada pelo Império Otomano e transformada em República no botim da Primeira Guerra Mundial. Sua condição de estar entre o fim do Ocidente e o começo do Oriente deixou cicatrizes profundas, verdadeiros registros históricos por onde navegam o comércio entre os dois continentes.
Situada entre a Europa, a Ásia e o Oriente Médio, a Turquia é o umbigo da civilização. Na margem ocidental do canal, a Fortaleza da Europa, construída por Mehmet II em 1452, no ponto mais estreito, é o símbolo inicial da conquista de Constantinopla. Próximo deste marco, o palácio Dolmabahçe se apresenta como símbolo do Império Otomano no século 19 e registro do último sultão no governo político.
Conquistar Constantinopla e nomeá-la Istambul inscreveu um acontecimento histórico de grandes proporções na interface cultural. O sultanato implantou a crença muçulmana e o seu ato fundador foi transformar a igreja da Santa Sabedoria, Haghia Sophia, símbolo máximo da cristandade no Império Bizantino, em uma mesquita, construindo minaretes e fontes para ablução, ritual de higienização preparatório para adentrar no templo.
No alto da colina, o palácio Topkapi é o registro da sede do governo otomano até o século 19 quando o sultão foi seduzido pela arquitetura ocidental e construiu o palácio Dolmabahçe. Nestes dois marcos históricos podemos ler o percurso de ocidentalização de um povo nômade oriundo da Ásia Central.
O escritor turco Orhan Pamuk narrou a decomposição do Império Otomano em lembranças de infância, onde um garoto atento e sensível capturava no seu microcosmo familiar os efeitos desta ocidentalização dos habitantes do canal do Bósforo.
No livro, Istambul: Memória e Cidade, Pamuk citou, em epígrafe: “a beleza de uma paisagem reside em sua melancolia”. Envolto ao tema da melancolia, o leitor é apresentado à paisagem do Bósforo como lugar instável entre o passado e o presente. “Enquanto a cidade fala da derrota, destruição, privação, melancolia e pobreza, o Bósforo canta cheio de vida, prazer e felicidade. Istambul extrai sua força do Bósforo”.
Hüzün, palavra turca para melancolia, transmite a sensação de perda espiritual profunda e o mesmo tempo, marca o sofrimento diante de um passado que não tem mais lugar no presente. A melancolia é bruma a envolver uma cidade e a população que nela tecem suas existências. “hüzün é tão densa que quase se torna palpável, e quase a vemos formar uma película que cobre o povo e suas paisagens; é um sentimento compartilhado, uma atmosfera comum a milhões de pessoas. Em Istambul os restos de uma gloriosa civilização do passado são visíveis por toda parte”.
Imagens: Márcio Mariguela
Melancolia
A melancolia designa um estado d’alma oscilante entre a depressão e mania. Serviu tanto para diagnosticar a tristeza que não passa como para um contentamento desmedido. O estado melancólico foi descrito, cartografado e diagnosticado na civilização ocidental desde os gregos clássicos.
No livro ‘A tinta da melancolia: uma história cultural da tristeza’, Jean Starobinski, com a finesse que lhe é própria, reconstruiu a história da melancolia para retratar a condição humana: ser aprisionado entre sentimentos opostos (alegria/tristeza, amor/ódio, coragem/covardia).
A matriz etimológica (melainè cholé) indica o melancólico governado pela bile negra, o humor negro: substância grossa, corrosiva, tenebrosa, amarga, proveniente do fígado. Quando a bile negra sobe à cabeça, o corpo entra num estado de transtorno, afetando a temperança, o equilíbrio e a moderação. O sujeito adoece num estado de insanidade, loucura e desatino.
Aristóteles descreveu o melancólico: “neles a bile negra é excessiva e quente, o que os torna presas do delírio, experimentam felizes disposição passageira, tornam-se amorosos sendo facilmente levados às paixões e desejos, e alguns se mostram mais tagarelas. Frequentemente ficam aflitos e não conseguem dizer deste estado de ansiedade; ficam alegres e a razão desta alegria também desconhecem”.
Hipócrates tinha um diagnóstico certeiro: “quando o temor e a tristeza persistem por muito tempo, é um estado melancólico”. Starobinski constatou que na ciência moderna, a melancolia se confundiu com sintomas de depressão endógenas e reacionais, esquizofrenia, neuroses ansiosas, paranoias, manias e megalomanias. Por certo, o tratamento da melancolia acompanhou a própria história do diagnóstico e as representações do que é o elemento psíquico existente nos seres humanos e não nos demais animais.
Numa carta ao amigo Wilhelm Fliess em 1895, o neurologista Sigmund Freud também identificou o sofrimento melancólico: ‘A melancolia ocorre, tipicamente, em combinação com intensa angústia. O afeto correspondente à melancolia é o luto – em outras palavras, o desejo por alguma coisa perdida”.
No ensaio “Luto e Melancolia” publicado em 1917, Freud comparou a melancolia com o trabalho de luto indicando o ponto em que se separam: autoestima, amor próprio. ‘A melancolia se caracteriza por um abatimento, perda do interesse pelo mundo exterior e da capacidade de amar, inibição e diminuição da autoestima, que se expressa em recriminações e ofensas à própria pessoa e pode chegar a uma delirante expectativa de punição”. O melancólico não tem amor próprio.
Vincent van Gogh é um caso típico de melancolia. Numa de suas cartas ao irmão Theo registrou sua condição e escolha: “em vez de me deixar levar pelo desespero, tomei o partido da melancolia ativa enquanto tinha a potência da atividade; preferi a melancolia que aspira e que busca, à outra que embota e, estagnada, desespera”.
Pouco antes de ser atingido por uma bala perdida, Vincent pintou o Retrato do Dr. Gachet (1890). Nela inscreveu a melancolia de forma surpreendente. O médico psiquiatra que o consultava aparece apoiando a cabeça abatida pela melancolia. O corpo inclinado compõe um horizonte montanhoso petrificado. Sobre a mesa, dois ramos de Digitalis (flor conhecida como dedaleira) num copo, indicando o fármaco utilizado no tratamento do abatimento melancólico. Em segundo plano, dois livros com o título no dorso, novelas com a personagem principal em estado d’alma melancólica, Manette Salomon e Carminie Lacerteux.
Dr. Gachet também escreveu um estudo sobre a melancolia indicando que o melancólico é semelhante a um vegetal ou a uma pedra: fica estático, em situação de captura. “Num obstáculo no qual o pensamento e o movimento vital se chocam sem ter fim; tropeçam sem cessar e em vão, o obstáculo não pode ser ultrapassado”.
Fonte:
Revista Arraso / Estilo+Filhos+Noivas
Ano 9; nº 74; 2º semestre/2017
Ao Gato Preto Editora – Piracicaba/SP
Ilustração: Maria Luziano