Nos estudos em história da filosofia ocidental, do século 4 aC, na vasta extensão dos gregos e romanos até o século em que nos situamos, o iniciante de tão longa jornada, vai aos poucos escolhendo seus companheiros: os filósofos que representam a história da filosofia.
Meus eleitos foram os criadores de uma obra de pensamento marcada pela presença decisiva de amigos. Todo criador tem o amigo com quem compartilha seu trabalho de criação. O ato de criação é tecido pela amizade, o estado de enlaçamento criativo.
Aristóteles dedicou o livro 8 da Ética ao tema da amizade, destacando ser uma virtude sumamente necessária à vida:
“Porque sem amigos ninguém escolheria viver, ainda que possuísse todos os outros bens. Amizade ajuda os jovens e aos velhos; aos que estão no vigor da idade, ela estimula a prática de nobres ações, pois na companhia de amigos os homens são mais potentes para criar, agir e pensar”
Dentre os amigos criadores, destaco o encontro do jovem professor de Filologia Clássica na Universidade da Basileia, Friedrich Nietzsche e o músico Richard Wagner. Meu interesse é no registro histórico do primeiro encontro presencial, corpo-a-corpo. Na carta, 09/nov/1868, escrita em Leipzig, Nietzsche narrou ao amigo Erwin Rohde, sua felicidade ao receber o convite para se encontrar com Wagner as 3:15pm no café Teatro.
O músico, já consagrado por suas composições operísticas, estava em segredo em Leipzig [nem a imprensa sabia] e solicitou um encontro. Desejava ouvir dos lábios de Nietzsche o que ele falava nas aulas sobre a função da música na tragédia grega.
Depois do breve encontro no café, Nietzsche foi convidado para jantar na família onde Wagner se hospedava:
“julgando que havia numerosos convidados, decidi fazer grande toilette [comprou fraque, aparou seu indefectível bigode]. Fui apresentado ao maior poeta da música e disse-lhe da minha veneração. Agora vou lhe contar os efeitos desse encontro: prazeres fortes que reverberam em mim produzindo uma descontinuidade. É um homem fabulosamente vivaz e fogoso; fala muito depressa, é muito brincalhão; alegra e anima em extremo uma reunião íntima”
O jantar deu o tom e o sabor da intensa amizade que produziu efeitos de criação para ambos:
“Tive com ele uma prolongada conversa sobre Schopenhauer. Foi um enorme prazer ouvi-lo falar com entusiasmo indescritível do meu filosofo preferido e do quando agradeceu por ter sido ele que primeiro reconheceu a essência da música. No final, quando me preparava para partir, Richard apertou calorosamente minhas mãos e convidou-me com grande amabilidade para novo encontro para falarmos de música e filosofia”
Novos encontros se seguiram e Nietzsche passou a conviver na intimidade do casal Wagner e Cosima. Viajaram juntos e conversavam sobre a importância da obra de Arthur Schopenhauer para o enlace definitivo da filosofia com a música, em especial no drama musical onde palavra e som alcança o sublime.
Anos depois deste primeiro jantar, Nietzsche criou a obra fundadora do seu pensamento filosófico: Assim Falou Zaratustra. Nela, a filosofia tornou-se musical. Nos cantos de Zaratustra, o humano foi designado potência de criação.
In: Jornal Cidade – Rio Claro/SP – 16/abril/2021 – Projeto Conhecimento para Todos