As ilustrações de Dalí no livro A Imaculada Conceição, escrito por Breton e Éluard, tal como exposto no artigo anterior, podem ser interpretadas como uma escrita que atualiza a tese principal do surrealismo e podem também ser identificadas como o registro de entrada do jovem catalão no movimento que revolucionou a arte contemporânea.
Numa carta (02/1932) a André Rolland de Renéville, Breton traçou a gênese do livro: “Se o Primeiro e o Segundo Manifestos eram a narração do conteúdo manifesto do sonho surrealista, L’Immaculée Conception é a narração de seu conteúdo latente. A vontade original de simulação de delírios sistematizados ou não teve como benefício apreciável não somente fazer aparecerem imprevistos e todas as novas formas poéticas, mas também o efeito transcendental de consagrar, de uma maneira exemplarmente didática, as categorias livres do pensamento, culminando na alienação mental. L’Immaculée Conception é o livro pelo qual, a despeito de qualquer genealogia, entramos na via do conhecimento e perseguimos a adaptação do conhecimento aos desejos, graças às possessões e às mediações, opostas grosseiramente umas às outras do ponto de vista social, mas dialeticamente conciliáveis. É o livro da possessão ideal.
Eis uma boa referência para leitura: A Imaculada Conceição é o conteúdo latente do sonho surrealista. Aqui a distinção entre conteúdo latente e conteúdo manifesto, estabelecida por Sigmund Freud no livro A Interpretação dos Sonhos é assumida plenamente pelos autores (mais um indicativo das relações entre os atores surrealistas e a psicanálise).
A 1ª parte é dividida em cinco sequências temporais — a concepção, a vida intra-uterina, o nascimento, a vida (pós-parto) e a morte — e possui as referências principais para uma antropologia filosófica do surrealismo: sua concepção de homem, de ser humano. Na 2ª (As Possessões) há um recenseamento das doenças mentais da maior importância e, ao mesmo tempo, a constituição da positividade dos estados patológicos (para além do discurso psiquiátrico) para compreender o conteúdo latente do sonho surrealista: a loucura como modo de enunciação da verdade do desejo que habitada cada ser humano em sua radical singularidade.
Aqui a palavra possessão possui duplo campo de significação: designa, por um lado, posse (do amor, da afeição de alguém; de um bem qualquer; domínio de algo); e, por outro, ser possuído por uma paixão, por uma ideia delirante, ser tomado por uma alucinação. Há também o sentido de possessão no discurso religioso: condição ou estado de quem se sente habitado (possuído) e manejado por um ente sobrenatural, transcendental. Santa Tereza de Ávila, por exemplo, escreve estados de possessão mística: era possuída pelo amor de Deus.
O título do livro faz referência direta e explicita às aparições (02/1858) da Virgem Maria à jovem Bernadette, camponesa analfabeta que viva na região de Lourdes na França. Segundo relato da jovem, Maria apareceu e disse: “Eu sou a Imaculada Conceição”. Confirmando assim, pela aparição, o dogma proclamado em 1854 pelo papa Pio ix.
Na série de Entrevistas Radiofônicas Breton falou que “a preocupação maior na segunda parte da L’Immaculée Conception era reduzir a antinomia entre razão e desrazão (loucura)‘ e esta sempre foi ‘uma das ambições permanentes do surrealismo”. Disse ainda da clara convergência entre o que Dalí defendia e a proposta estética-política do catálogo das doenças mentais. O que os enlaçava era um desejo de ajustar as contas com o discurso psiquiátrico e as práticas institucionais de internação dos loucos, em especial daqueles identificados como psicóticos paranóicos.
Sobre a entrada de Dalí no movimento surrealista (ilustrando o livro), Breton destacou: “Contudo, o que fundamentalmente distingue o que nós queríamos daquilo que Dalí quis tem a ver com as intenções. As nossas apontavam para outros horizontes. Durante alguns anos, Dalí encarnou o espírito surrealista e o fez brilhar com uma intensidade só possível a quem nada teve a ver com os episódios, por vezes ingratos, da gestação do movimento surrealista”.
Salvador Dalí ingressou no movimento e encontrou um campo de combate já constituído: várias vitórias foram conquistadas no espaço das artes e do reconhecimento público. Desde a celebração do Cinquentenário da Histeria em 1928, os surrealistas levaram a sério o hercúleo trabalho de interrogar as fronteiras entre o normal e o patológico. Ampliando as fronteiras, abriram novas e inusitadas perspectivas para a história da cultura ocidental contemporânea.
in: série “livros e lugares” – Caderno Cultura do Jornal de Piracicaba,26/jan/2014