Ao Monsenhor Orivaldo Casini, companheiro de graduação em Filosofia, por seus 25 anos de ordenação sacerdotal.
Num belo ensaio publicado em Profanações, o filósofo italiano Giorgio Agambem traçou a etimologia da palavra gênio: “os latinos chamavam Genius ao deus a que todo homem é confiado sob tutela na hora do nascimento. A etimologia é transparente, e ainda é visível na língua italiana na aproximação entre gênio e gerar. Que Genius tivesse a ver com gerar é, aliás, evidente, pelo fato de o objeto por excelência ‘genial’ ter sido, para os latinos, a cama: genialis lectus, porque nela se realiza o ato de geração”. Decorre desta matriz, a heróica tarefa de cada um encontrar o seu próprio Genius: o deus que preside o nascimento de cada ser. Genius é a divinização da pessoa em sua radical singularidade; é o princípio que rege e exprime a sua existência inteira.
“Há uma expressão latina que exprime maravilhosamente a relação secreta que cada um deve cultivar com o próprio Genius: indugere genio. É preciso ser indulgente com Genius e abandonar-se a ele; a Genius devemos conceder tudo o que nos pede, pois sua exigência é nossa exigência; sua felicidade, nossa felicidade. Mesmo que suas — nossas! — pretensões possam parecer inaceitáveis e caprichosas, convém aceitá-las sem discussão. Afinal, genialis é a vida que distância da morte o olhar e responde sem hesitação ao impulso do gênio que a gerou”.
Incorporo as palavras de Agambem para apresentar (nos próximos artigos) um Dali pouco conhecido do grande público apreciador de sua arte genial como pintor e escultor. Dali foi um gênio também na escrita. Escreveu: Diário de um Gênio, Manifesto Amarelo, Manifesto Místico, O Amigo das Artes (poemas). Seus ensaios estéticos com a palavra podem ser lidos como um permanente exercício de pensamento sobre a arte de seu tempo e um lúdico esforço para formular conceitualmente os princípios metodológicos de seu trabalho artístico: o seu estilo! Através de sua escrita podemos também reconhecer o encontro com o deus que presidiu seu nascimento: o seu Genius.
Em 1926, o jovem catalão Salvador Domingo Felipe Jacinto Dali, foi expulso da Escola de Belas Artes San Fernando de Madri. Decidiu visitar Paris e Bruxelas em busca de interlocutores à altura de sua genialidade. No meio artístico da capital francesa fora dinamitado pela revolução surrealista. Dali encontrou nos militantes da causa surrealista a companhia tão desejada. Com André Breton, Paul Élouard, Magritte, Pablo Picasso e Miró (o anfitrião de Dali no grupo) passaram noites (regadas a vinhos — regidos pelo deus Baco) pelos cafés dos bairros Montparnasse e Montmartre — reduto dos artistas que viviam à margem da ordem estética hegemônica, instaurada pelo romantismo pequeno burguês do 2º Império.
De volta à Espanha, publicou o Manifesto Amarelo e, com Luis Buñuel, participou do processo de criação dos filmes Um Cão Andaluz e A Idade do Ouro. Retornou a Paris em 1929 e se apaixonou por Gala Éluard (pseudônimo de Elena Ivanovna Diakonova, imigrante russa, na época esposa do amigo poeta). Formaram um triângulo amoroso com conseqüências decisivas para a criação artística de ambos. Dali fez de Gala uma musa inspiradora: retratada em dezenas de telas. Dali embarcou na grande aventura surrealista no período do Segundo Manifesto do Surrealismo – o que faz toda a diferença na maneira como contribuiu para os rumos do movimento na década de 1930. Dois exemplos podem ser destacados: sua colaboração como ilustrador do livro L’Immaculée Conception (A Imaculada Conceição), escrito por Breton e Éluard; e a tela O Grande Masturbador — considero sua obra fundadora na pintura; o ponto de partida de seu estilo como pintor.
O lançamento do Segundo Manifesto aprofundou o tom belicoso das críticas e reivindicações dos surrealistas frente à arte e a política do seu tempo: a questão central era extrair as consequências éticas de uma dada posição estética. Um livro que retrata com precisão os embates descritos no Manisfesto é A Imaculada Conceição. É ponto de encontro de Dalí com a escrita de Breton e Éluard: a gênese do surrealismo do jovem catalão.
Breton havia prefaciado a primeira exposição individual de Dalí em Paris, na Galeria Goemans. A entrada de Dalí no movimento surrealista ocorreu, portanto, num momento em que a escrita automática é concebida como ensaio de simulação do delírio mental (psíquico). A presença do artista espanhol no livro (sua escrita imagética) é marcada pelas ilustrações que fez para a edição e representa acima de tudo, a escritura que lavra os laços do gênio catalão com a cultura francesa. Desde então, a palavra surrealismo virou identidade de Salvador Dali. Coube a ele, mais do que qualquer outro, representar o surrealismo na história da arte contemporânea.
in: série “livros e lugares” – Caderno Cultura do Jornal de Piracicaba, 19/jan/2014