Imagens de Maria

Imagens de Maria

Ouça o artigo na íntegra:

Venho de uma linhagem paterna devota de Nossa Senhora Aparecida. No mais longínquo de minha memória infantil, vejo a padroeira do Brasil num canto da sala. Minha avó ganhou como presente de casamento a imagem de 40 cm, em gesso, com uma coroa em fundo vermelho, hoje desbotada pelo tempo. A imagem acompanhou meus primeiros passos em direção a um objeto.

Quando minha avó faleceu, sua filha guardou os objetos no quarto até que um dia, numa polenta com frango, disse: “agora me converti à igreja evangélica e o pastor falou que não posso ter imagem de santo ou da virgem exposta em casa. Vou guardar numa caixa”.

Engasguei e indaguei: “e a Nossa Senhora da vó?” Se você quiser pode levar, me respondeu. Hoje a imagem da virgem Aparecida nas águas do Parnaíba segue me acompanhando num altar no escritório. Olho para ela e vejo o semblante materno da mulher que me educou.

Tenho predileção em conhecer as diferentes invocações à Maria e suas representações em imagens na história da cultura ocidental cristã. Na mais diferente realidade cultural, a Virgem Maria é objeto de devoção como símbolo da função materna e, por extensão, da própria família. Desde a concepção, em dogma imaculada, até sua assunção ao céu, a presença da fé e crença numa mulher que deu à luz ao reconhecido filho de Deus é cultuada em múltiplas imagens e atos de nomeação.

No povoado de São Miguel dos Milagres, litoral norte de Alagoas, existe um pequeno templo no lugar mais alto daquela região. Todo pintado de azul celeste, faz bela composição com o céu marejado e o vasto campo de coqueiros. Aos pés da igrejinha azul, duas fileiras de casebres se esparramam margeando a estrada e desenhando a geografia litorânea até a divisa com Pernambuco.

No altar mor, a imagem da Virgem Mãe do Povo com o menino Jesus ao colo, estende o braço direito num gesto e expressão que demonstra acolhimento e benção. A escultura, provavelmente feita em Portugal no século 19, apresenta Maria com cabelo alongado sobre o ombro direito e ornado por uma coroa prateada. Seu rosto demonstra traços de uma mulher do povo/ado com um detalhe singular: brinco pingente verdadeiro. Sim, um par de brincos define a composição. Primeira imagem (em escultura) de Maria com brincos que conheci.

Na catedral de Granada (Espanha), conheci a mais bela representação erótica de Maria com o seio desnudo, invocada como a Virgem do Leite. A obra pertence ao acervo da coleção particular da rainha Isabel 1 de Castela, devota fervorosa da Virgem amamentando o menino Deus. Ela própria empenhou-se no culto e devoção por toda extensão Península Ibérica. A imagem atravessou Oceano Atlântico no processo de colonização da América espanhola.

No monastério dedicado à Virgem Maria das Mercês em Cuzco (Peru) há uma imagem surpreendente: São Pedro Nolasco, fundador da ordem dos mercedários no século 13, é retratado mamando no seio da Virgem do Leite. A pintura é discreta e, compõem a série sobre a vida do santo, ornamenta as paredes do pátio.

Conhecia a imagem de São Bernardo de Claraval deglutindo o leite a jorrar do seio de Maria. Nas representações, a Virgem do Leite é uma escultura diante da qual o piedoso santo recebe o milagre. Na cena do monastério de Cuzco é o próprio Nolasco com os lábios no seio; sendo observado, com certo espanto, pelo menino Jesus que estava mamando no outro seio.

Publicado no Jornal Cidade de Rio Claro/SP

Uma gata no divã de Freud

Gata no divã de Freud

A relação amorosa dos humanos com os animais domesticados é um capítulo curioso na história da cultura. Ao que tudo indica, os cães têm preferência neste convívio. As imagens de humanos com cachorros foram retratadas na arte pictórica e é um tema recorrente na literatura, no cinema, em quadrinhos (Milu, o fiel companheiro das aventuras de Tintim). Na cultura oriental, os gatos são animais sagrados. No ocidente, estão associados às representações do mal. Gato preto então, é depositário do ódio e terror.

Os humanos domesticaram diferentes animais com propósitos distintos. O cavalo, camelo, boi, cabra, ovelha e a lista se estende por toda vastidão de território ocupado pelos domesticadores. Na lista, há os chamados bichos de estimação, aqueles que são cuidados por puro prazer e que mobilizam afetos amorosos.

Pássaros, répteis, peixes, caninos e felinos são exemplos de animais de estimação. Nesta categoria, os que interagem diretamente no emocional sendo tratado como membros integrantes da família. Outros, tem função ornamental. Cães e gatos são disputados em ranking de melhor amigo dos humanos. Os gateiros, os cachorreiros e os quem amam ambos indistintamente.

Os que preferem a companhia dos cães, listam todas as virtudes do aclamado mais fiel de todos os amigos. Os amantes dos gatos não ignoram o poder sedutor de um felino. A eles cabem ocupar a função de amante diante do objeto/gato amado. Os cães, ao contrário, nos instalam na função de amado. Eles nos amam, incondicionalmente.

No diálogo O Banquete, o filósofo Platão cartografou a relação amorosa em duas posições: érastès, o amante; e o érômémos, o amado. Para que o amor (Eros) se efetive é preciso, no mínimo, dois lugares. Esta hipótese interpretativa ocorreu-me ao ler um caso pitoresco na mais recente biografia do criador da psicanálise, “Sigmund Freud: na sua época e em nosso tempo” escrita por Elisabeth Roudinesco.

Já era sabido a paixão de Freud pelos cães e a falta de apreço pelos gatos. Há relatos de pacientes que frequentaram seu divã narrando a presença do casal de chows-chows na cena analítica. Eles se reproduziam no apartamento da família Freud e os filhotes doados aos que se tornaram íntimos, como a Princesa Marie Bonaparte e a poetiza Hilda Doolittle.

No ensaio Introdução ao Narcisismo (1914) Freud escreveu: “o narcisismo de uma pessoa tem grande fascínio para aquelas que desistiram da dimensão plena de seu próprio narcisismo e estão em busca do amor objetal”. Como exemplo deste fascínio, citou “a atração de alguns bichos que parecem não se importar conosco, como os gatos e os grandes animais de rapina”. Numa carta, Freud disse não apreciava a esposa de seu fiel companheiro Max Eitington: “Ela tem a natureza de um gato e tampouco os aprecio. Ela tem o encanto e a graça de uma gata, mas não é um bichano adorável”.

Roudinesco reconstruiu a cena, datada em 1913, quando Freud encontrou uma gata dormindo em seu divã. Pela fresta da janela do consultório a gata passou a visitá-lo com frequência e, aos poucos seduziu o médico vienense. Reconhecendo a atração de Freud pelos cães e o quanto rejeitava os gatos, considerado um animal demasiado feminino e narcísico, a autora destacou os efeitos deste inesperado encontro na escrita do ensaio sobre o narcisismo.

A gata narcísica visitante, “ignorava sua presença e se esgueirava prazerosamente por entre os objetos de sua estima coleção de antiguidades. Obrigado a reconhecer que ela não causava nenhum dano às coisas amontoadas no consultório, começou a observá-la, amá-la, alimentá-la. Ficava a observar seus olhos verdes, oblíquos e gelados e julgava seu ronronar a expressão de um verdadeiro narcisismo. Com efeito, precisava insistir para ela prestasse atenção nele”.

Fonte:
Revista Arraso / Design & Decor
Ano 9; nº 73; 2º semestre/2017
Ao Gato Preto Editora – Piracicaba/SP
Ilustração: Maria Luziano

Curso de Extensão em Psicanálise – Os Escritos de Jacques Lacan – Módulo 1: A agressividade em psicanálise

Folder Curso Lacan

Cronograma:

23/agosto; 06 e 20/setembro; 25/outubro; 29/novembro

Quarta-Feira das 19h30 às 21h30

Local: Rua Saldanha Marinho, 792 – Piracicaba/SP

Pagamento: R$ 350,00 no ato da inscrição

Inscrição até 20/agosto/2017: mmariguela@gmail.com

Vagas limitadas

Enunciado:

Publicado em 1966, Écrits é um livro acontecimento. Coletânea histórica do percurso de Jacques Lacan em seu empreendimento de retorno à Freud. Em cada ensaio, a letra inscreve o trabalho em curso: Lacan, o escritor.

Há o ensino de Lacan nos Seminários, transmissão oral. Há o ensino de Lacan em outro modo de transmissão, a letra inscrita de próprio punho. No lançamento Écrits, numa conferência em Lyon, “Lugar, origem e fim do meu ensino”, Lacan assumiu publicamente que há ensino em seus escritos: “[o livro] trata simplesmente do lugar onde cheguei, o que me põe na postura de ensinar, uma vez que ensino há”.

No palco público do Seminário atuou por três décadas interrogando os praticantes da clínica psicanalítica e ensinando a ética da psicanálise; com mestria, encarnou a figura emblemática de Sócrates na Ágora.

Na reclusão de escritor ou no palco dos Seminários, forçou a língua mátria a dizer o indizível. Sua inovadora prática clínica revolucionou a história da psicanálise. Leitor surrealista da letra freudiana, atraiu multidões de diferentes matizes e lugares.

No Curso de Extensão que proponho, sustento uma hipótese de leitura para selecionar alguns escritos: cada texto/ensaio podem ser lidos como cartas exortativas, escrita com endereçamento e com uma função específica.

Do latim exorto, o verbo exortar é um chamado ao ânimo, estimulando, encorajando, incitando à ação. Como estilo epistolar, na antiguidade clássica, a exortação tinha o propósito de chamar ao ânimo, animar, estimular. Era um instrumento para encorajar os soldados em campo. A persuasão é a estratégia da escrita exortativa pois pretende convencer o leitor à ação.

Assim, divido a proposta de leitura em módulos para cada tema escolhido no conjunto dos Escritos. Neste 1º, A agressividade em psicanálise, escrito na forma de um “relatório teórico apresentado no XI Congresso dos Psicanalistas de Língua Francesa; reunido em Bruxelas em meados de maio de 1948”.

O relatório apresentado em 5 Teses sobre a “noção de agressividade na clínica e na terapêutica” explicitou o propósito de “provar perante os senhores se é possível formar [da agressividade] um conceito tal que possa aspirar um uso científico, isto é, apropriado a objetivar fatos de uma ordem comparável na realidade, ou mais categoricamente, a estabelecer uma dimensão da experiência cujos fatos objetivados possam ser considerados variáveis”.

Bibliografia Básica:

LACAN, Jacques. A agressividade em psicanálise. In: Escritos. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

___________. Meu Ensino. Tradução: André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

FOUCAULT, Michel. Genealogias do estatuto da parresia: as práticas do dizer-a-verdade sobre si mesmo. In: A Coragem da verdade. Curso no Collège de France (1983-1984). São Paulo: Martins Fontes, 2011.

MILNER, Jean-Claude. A obra clara: Lacan, a ciência e a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.

PORGE, Erik. O gênio clínico de Lacan. In: Jacques Lacan, um psicanalista – percurso de um ensino. Brasília: Editora UNB, 2006.

ROUDINESCO, Elisabeth. Os Escritos: retrato de um editor. In: Jacques Lacan: Esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento. São Paulo: Cia das Letras, 1994.

DUNKER, Cristian. Por que Lacan? In: Coleção Grandes Psicanalistas. São Paulo: Zagodoni, 2016

Grupo de Estudos em Freud – 2º Semestre 2017 – A Sexualidade na Etiologia das Neuroses

Cronograma: 02, 16 e 30/agosto; 13 e 27/setembro;

04 e 18/outubro; 08 e 22/novembro

Quarta-Feira das 19h30 às 21h

Pagamento: R$ 60,00 a cada encontro

Local: Rua Saldanha Marinho, 792 – Piracicaba/SP

Inscrição para iniciantes: mmariguela@gmail.com

“Acabo de ler, encantado, o Narcisismo. Fazia tempo que não tinha um tal prazer numa leitura. Devo confessar-lhe que há anos não consigo ler nada além de seus escritos. O Sr. nos mimou muito, nos dando coisas bonitas e fortes demais para ler, depois delas, nada mais tem sabor”

(Carta de Sándor Ferenczi à Sigmund Freud, 04/julho/1914)

 

Enunciado:

Neste ano, lancei a proposta de leitura retroativa do ensaio “Luto e Melancolia”, escrito em 1915 e publicado 1917, para o ensaio “Introdução ao Narcisismo” (1914).

Dedicamos o 1º semestre ao estudo de “Luto e Melancolia”. Identificamos várias camadas que compõem o texto e o modo como remetem ao estatuto da melancolia ao longo da história da cultura ocidental, desde os gregos na antiguidade até a nosografia neuropsiquiátrica da época de Freud que localizava os sintomas melancólicos na categoria de psicose maníaco-depressiva (PMD).

Também destacamos o que Freud antecipa e seus desdobramentos na construção arquitetônica da 2ª tópica do funcionamento do Aparelho Psíquico. Em especial, a gênese do Super-eu e o problema econômico do masoquismo.

No artigo “Neurose e Psicose”, escrito 10 anos depois do “Luto e Melancolia”, Freud encontrou um lugar para instalar a melancolia na nosografia psicanalítica do sofrimento psíquico. Estabeleceu a etiologia comum à irrupção de uma psiconeurose ou psicose: “a frustração, a não realização de um daqueles desejos infantis nunca sujeitados, tão profundamente enraizados em nossa organização filogeneticamente determinada”.

A descrição de um agente psíquico responsável pela manutenção da frustração impunha uma nova cartografia do aparelho psíquico: “O comportamento do Super-eu deve ser levado em consideração, o que não se fez até agora, em todas as formas de doença psíquica. Podemos, no entanto, postular provisoriamente que tem de haver afecções baseadas num conflito entre Eu e Super-eu. A análise nos dá o direito de supor que a melancolia é um exemplo típico desse grupo, e reivindicamos para esses distúrbios o nome de ‘psiconeuroses narcísicas’”.

Nesse 2º semestre, este é o ponto de passagem para prosseguir o trabalho de leitura retroativa ao texto “Introdução ao Narcisismo”.

  1. contexto histórico da escrita do ensaio sobre o Narcisismo.
  2. a situação da clínica de Freud em 1914.
  3. a nosografia do Transtorno de Personalidade Narcísica no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM-5.
  4. narcisismo e megalomania: a mania na melancolia e na psicose.

 

Bibliografia Básica:

FREUD, Sigmund

“Introdução ao Narcisismo” (1914)

“Luto e Melancolia” (1915)

“Alguns tipos de caráter encontrados na prática psicanalítica” (1916)

In: Obras Completas. Volume 12. Tradução: Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

“Sobre o mecanismo da paranoia” (3ª parte) do relato do caso Schreber de 1911 In: Obras Completas. Volume 10. Tradução: Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

LAMBOTTE, Marie-Claude “Narcisismo”. In: Dicionário Enciclopédico de Psicanálise: o legado de Freud e Lacan, editado por Pierre Kaufmann. Jorge Zahar Editor, 1996.

GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo Introdução à metapsicologia freudiana. Volume 3. Jorge Zahar Editor, 1995.

OVIDIO, Metamorfoses, Livro 3, versos 345 a 520 (gênese do mito de Narciso na história da cultura ocidental).

No link abaixo poderão acessar a tradução realizada por Raimundo Nonato Barbosa de Carvalho, como tese de pós-doutorado defendida na Universidade de São Paulo, 2010

http://www.usp.br/verve/coordenadores/raimundocarvalho/rascunhos/metamorfosesovidio-raimundocarvalho.pdf

Psicanálise e Filosofia