Os gatos de Éfeso

Outrora, naquele corredor de ruínas, havia uma grande cidade (polis) governada pelos Gregos, depois pelos Romanos, os Jônios, os Lídios e os Persas. Atualmente é moradia de dezenas de gatos e local de peregrinação dos apaixonados pela história das civilizações e cristãos em visitação à casa de pedras no alto da colina, onde o discípulo amado João levou Maria, a mãe do crucificado, para passar os seus dias finais na terra.

Banhada pelo mar Egeu, Efhesus era porta para os gregos adentrarem no Oriente e franqueou, tempos depois, o domínio romano na Ásia menor. O que restou em pedras memoriais pertence atualmente ao distrito de Esmirna, próximo a Kusadasi, território da Turquia. Os gatos que por lá habitam possuem a majestade dos tempos de glória da cidade. Deitados em colunas de templos e palácios, em fragmentos de esculturas e relevos, cada felino adquiri uma beleza composta. As ruínas emolduram de forma simétrica a beleza dos gatos.

Os muçulmanos consideram os gatos seres dotados de baraka, a chama do espírito, a pulsação da vida. O profeta Maomé teve em sua companhia a presença de vários gatos, sendo Muezza o seu preferido. Conta a tradição que certa vez o profeta estava escrevendo as palavras sagradas reveladas e Muezza dormiu na manga de sua túnica. Para não acordar seu companheiro felino, cortou o tecido deixando que continuasse a dormir. O gato é também símbolo da pureza, por seu comportamento autolimpante. No pátio de entrada das mesquitas há fontes para ablução, ritual de higienização preparatório para adentrar no templo. Para elevar-se em oração a Allah, Senhor do Universo, é necessário fazer como os gatos: purificar-se.

Apesar de inumeráveis saques que sofreu ao longo dos séculos, Éfeso conseguiu preservar em suas ruínas o cotidiano da vida pública na antiguidade clássica. O trabalho arqueológico realizado e o investimento em restauro, permite prever que este magnífico exemplar de cidade greco-romana, embora contenha menos de dez por cento da cidade que abrigou 250 mil pessoas, continuará servindo de cápsula por onde os visitantes são transportados numa surpreendente viagem no tempo e tendo por companhia a presença dos gatos.

Em Éfeso formou-se também um dos primeiros agrupamentos de seguidores de Cristo, Jesus de Nazaré. O apóstolo Paulo de Tarso esteve em Éfeso e foi responsável por organizar a Igreja cristã. Na Epístola aos Efésios encontra-se precioso registro histórico da gênese o cristianismo. As exortações contidas nesta epístola fornecem a medida da moral cristã emergente. Paulo identifica-se com o povo de Éfeso, gregos como ele: “nós vivíamos outrora submetidos aos desejos da carne, satisfazendo as vontades da carne e os seus impulsos” (2, 1-22). O amor e a misericórdia de Deus, pela graça de Cristo, propõem a salvação dos pecados da carne.

Ao final da exortação, no capítulo 5 e 6, temos o registro de como era a vida dos habitantes de Éfeso e de como deveria ser a partir da conversão. O modo de vida cristão foi circunscrito num conjunto de preceitos morais que serviam para identificar o membro do corpo de Cristo que é a sua Igreja. A vida nova em Cristo é um exercício constante e permanente para afastar-se dos desejos da carne e cultivar os dons do espírito. “Vede, pois cuidadosamente como andais: não como tolos, mas como sábios… E não vos embriagueis com vinho, que é uma porta para a devassidão, mas buscai a plenitude do Espírito” (5,8).

Na soleira do templo dedicado ao Imperador Adriano, o gato preto com o peito e as patas brancas, com olhos verdes mirando o horizonte, tem a postura de guardião da memória ancestral. No livro Memórias de Adriano, Marguerite Yourcenar iniciou a narrativa marcando um tempo preciso: o retorno de Adriano à Roma depois de uma longa viagem pela Ásia, começando por Éfeso, onde foi recebido com as devidas honras. O templo foi construído para simbolizar a presença do Imperador e o que restou é o pórtico com seus frisos em relevo narrando a gênese da cidade e os seus deuses protetores. Ao relento está a réplica do pórtico, o original está abrigado no Museu de Éfeso.

Apesar de inumeráveis saques que sofreu ao longo dos séculos, Éfeso conseguiu preservar em suas ruínas o cotidiano da vida pública na antiguidade clássica. O trabalho arqueológico realizado e o investimento em restauro, permite prever que este magnífico exemplar de cidade greco-romana, embora contenha menos de dez por cento da cidade que abrigou 250 mil pessoas, continuará servindo de cápsula por onde os visitantes são transportados numa surpreendente viagem no tempo e tendo por companhia a presença dos gatos.

Fonte:
Revista Arraso
Ano 9; nº 77; 2º semestre/2018
Ao Gato Preto Editora – Piracicaba/SP
Ilustração: Maria Luziano