Na Antiguidade grega e romana havia o preceito ético do cultivo dos prazeres sensíveis ligados a um conjunto de técnicas que auxiliavam no exercício de formação do caráter e da virtude. Viver era concebido como uma arte, exigindo de cada indivíduo esforço contínuo em transformar cada gesto do cotidiano num modo de expressão da beleza, bem estar e convivência pacífica consigo mesmo e com os outros. O cultivo da arte de viver recebeu o nome de aphrodisia, o uso dos prazeres.
Aphrodisia designava atos, gestos, contatos e comportamentos que proporcionavam certa forma de prazer que estavam para além do ato sexual e incluíam os prazeres relacionados a cada um dos órgãos sensoriais: tato, olfato, paladar, audição, visão. Para cada um dos órgãos do sentido, uma forma de prazer correspondente. O termo deriva do culto à deusa Afrodite (Vênus, para os latinos) representante de tudo o que se refere ao amor, à beleza e aos prazeres. Prestar culto à Afrodite era uma maneira de engajar-se num trabalho artístico de fazer da vida (singular e coletivamente) uma obra de arte. Cuidar de si, ocupar-se de si, não tinha esta perspectiva moralizante de individualismo que assola nossos dias. Ao contrário, o exercício ético do cuidado de si era (pré) condição para qualquer forma de cuidado com os outros. Cuidar de si exigia rigor, esforço, trabalho constante e ininterrupto. Assim, cultivar a beleza e o amor era o supremo ato de usar os prazeres com temperança e moderação.
O uso dos prazeres como exercício estético de si foi amplamente estudado pelo filósofo francês Michel Foucault, no livro História da Sexualidade (volumes 2 e 3) publicado em 1984. Em entrevista afirmou que, ao contrário do que dizem a maioria dos historiadores da antiguidade, os gregos não se interessavam muito por sexo. Na escala de valores, os prazeres relacionados à alimentação e à bebida eram superiores aos prazeres sexuais. A questão da dietética (o que e o quanto comer e beber) era um problema ético fundamental na estética de si, no cuidado de si.
“Comparei o que os gregos e os romanos escreveram sobre a alimentação com o que diziam sobre o sexo e cheguei à paradoxal conclusão que nos termos da aphrodisia, a dietética se sobrepunha ao uso do prazer sexual. Acho que é realmente muito interessante ver o movimento histórico de privilegiar a alimentação, que era superestimada na Grécia, até o interesse no sexo. No inicio da era cristã, a alimentação era muito mais importante do que o sexo. Por exemplo, nas regras para os monges, o problema era sempre o alimento (daí a prática do jejum como purificação e penitência). Isso perdurou durante toda a Idade Média. Foi somente no século 17 que o prazer sexual alcançou o status de problema moral por excelência. O sexo é uma invenção moderna”.
Não é sem motivo que o tema da temperança, como critério para qualificar quem é ou não virtuoso ocupava o centro de todos os preceitos morais. O sujeito temperante se caracterizava, sobretudo, por uma forma ativa de domínio de si permitindo resistir ou lutar para conquistar sua autonomia no terreno dos desejos e prazeres.
Quem praticava a phronesis, termo que designava a prática da temperança, moderação e prudência no uso dos prazeres, cultivava o bom senso, exercitando o autodomínio. Neste aspecto, não se tratava de fazer o que é permitido ou deixar de fazer o que é proibido. Não havia normalização do comportamento moral. No domínio da ética é o sujeito que estava em questão. Cabia a cada um determinar o que é bom ou ruim a partir de suas próprias experiências corporais, vivenciais. Assim, em última instância, era sempre o corpo o critério dos juízos de valores no que tange ao uso dos prazeres.
Retornar aos gregos não era para Foucault uma forma de estabelecer um modo de ser melhor ou mais condizente aos nossos dias, uma busca de modelos ideais. Ao contrário, o retorno à matriz fundadora de nossa civilização ocidental é tão somente um exercício de pensar por alteridade, permitindo reinscrever a diferença onde impera a identidade ideal. Justificando seu projeto de pesquisa em torno da genealogia da ética, o filósofo afirmou que pensar é não um processo adaptativo às normas e padrões já estabelecidos, reafirmando o que já se sabe. Pensar é um exercício de instaurar a diferença onde domina a hegemonia do igual, do mesmo.
“Pois, de que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição dos conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto quanto possível, o descaminho daquele que conhece? Há momentos na vida onde a questão de saber se é possível pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar e refletir. O que me surpreende é o fato de que, em nossa sociedade, a arte tenha se transformado em algo relacionado apenas a objetos e não a indivíduos ou à vida; que a arte seja algo especializado ou feita por especialistas que são artistas. Entretanto, não poderia a vida de todos se transformar numa obra de arte e cada um ser o verdadeiro artífice de sua própria existência?”
“O Uso dos Prazeres” – Caderno Cultura do Jornal de Piracicaba 08/jun/2014
ilustração: Erasmo Spadotto