“Praza ao céu que o leitor, audacioso e tornado momentaneamente feroz como isto que lê, encontre, sem se desorientar, seu caminho abrupto e selvagem, através dos pântanos desolados destas páginas sombrias e cheias de veneno; pois, a não ser que invista em sua leitura uma lógica rigorosa, e uma tensão de espírito pelo menos igual a sua desconfiança, as emanações mortais deste livro embeberão sua alma, assim como a água ao açúcar. Não convém que qualquer um leia as páginas que vêm a seguir; somente alguns saborearão este fruto amargo sem perigo. Há quem escreva em busca de aplausos humanos, por meio das nobres qualidades do coração que a imaginação inventa ou que eles podem ter. Quanto a mim, faço que meu gênio sirva para pintar as delícias da crueldade! Delícias não passageiras, artificiais; mas que começaram com o homem, e terminarão com ele. Este que canta não pretende que suas cavatinas sejam uma coisa desconhecida; ao contrário, orgulha-se que os pensamentos altivos e maldosos de Maldoror estejam em todos os homens.”
Inicia assim Os Cantos de Maldoror (tradução de Cláudio Willer, Editora Iluminuras) escrito por Isidore Lucien Ducasse aos 22 anos e publicado em versão completa em janeiro de 1869, com o pseudônimo Conde de Lautréamont. O nome adotado pelo jovem escritor foi retirado do título de um romance histórico escrito pelo poeta Eugéne Sue em 1838. O pseudônimo escolhido responde a dois níveis de significação: no nível aparente, serviu para encobrir o nome civil, situando Isidore entre a anonímia e a criptonímia, protegendo assim o autor de processos jurídicos de atentado a moral e os bons princípios. A condenação jurídica de Charles Baudelaire em 1857 ao publicar As Flores do Mal e de Gustave Falubert por sua Madame Bovary eram motivo suficiente para o jovem temer o mesmo destino. De igual modo, a escolha de um editor belga para o livro foi uma forma de Isidore Ducasse evitar os tribunais franceses.
No nível latente (não manifesto), o nome Lautréamont era bem apropriado para designar, por metonímia, o lugar de origem do escritor dos Cantos de Maldoror. Por homofonia, “l’autre a mont” significa de outro monte, de outro lugar. Aqui há duas vias que se entrecruzam: diz do lugar de onde provém o jovem escritor (nasceu em Montevidéu no Uruguai em abril de 1846, filho de um funcionário do consulado francês, enviado a França em 1859 como aluno interno do liceu de Tarbes, nos Pirineus, região de onde vinham seus pais); e diz do lugar de onde provém o personagem Maldoror (habitante de um outro monte, de outras terras).
Também por um jogo homofônico, “mal d’horreur” designa o mal do horror: estado afetivo intencionalmente invocado pelo escritor no leitor dos cantos. Os 6 Cantos que compõem a obra despertam o horror: sentimento de nojo, aversão, repulsa, ódio, profundo incômodo ou receio, medo, pavor, fobia. O leitor é pró-vocado: chamado a se confrontar com afetos recalcados pela censura moral. Os Cantos de Maldoror são semelhantes ao som da flauta de Pan, o legendário deus da mitologia grega, representado da cintura para cima como homem e da cintura para baixo como um bode. Nas narrativas míticas, Pan provem da região da Arcádia e vivia errante pelos montes e vales seduzindo as ninfas e violando sua pureza e candura.
Andre Breton (o codificador do surrealismo) também foi seduzido pela maldita poesia do jovem Isidore Ducasse em abril de 1919 quando subitamente arrebatado pelo único exemplar da Biblioteca Nacional de Paris. Esse encontro é certamente decisivo para a constituição do surrealismo como experiência poética revolucionária. O autor dos Contos de Maldoror apareceu nomeado no Primeiro Manifesto do Surrealismo de 1924 como fonte inesgotável de inspiração para a escrita automática. No Segundo Manifesto de 1930, quando encontramos certa recusa de antecedentes, uma única exceção é concedida: “Esta disposição de espírito a que chamamos surrealista e que assim vemos ocupada consigo mesma, parece cada vez menos necessário procurar antecedentes. Em matéria de revolta, nenhum de nós deve precisar de antepassados. Insisto em especificar que, em minha opinião, é preciso desconfiar do culto dos homens, por muito grandes que sejam aparentemente. Com uma só exceção, Lautréamont, não vejo quem não tenha deixado algum traço equívoco de sua passagem”. Cartografando a produção literária dos surrealistas do período, o Segundo Manifesto gira na órbita dos Cantos de Maldoror. Há diversas passagens que atestam a importância de Lautréamont para demarcar os rumos do surrealismo, sobretudo pela oposição que se estabeleceu entre a escrita automática (experiência de simulação do delírio verbal) e a atividade paranóica crítica como método de produção estilística, formulada por Salvador Dali (uma das imagens ilustra esta página). O trabalho de Dali como ilustrador de livros pode ser apreciado no Espaço Dali em Montmartre. Lá se encontra os originais da ilustração que fez em 1934 para uma nova edição dos Cantos de Maldoror.
in: série “livros e lugares” – Caderno Cultura do Jornal de Piracicaba, 12/jan/2014