“Outrora, se bem me lembro, minha vida era um festim onde se abriam todos os corações, onde todos os vinhos corriam. Uma noite, sentei a Beleza nos meus joelhos. E achei-a amarga. E injuriei-a. Consegui fazer desvanecer-se em meu espírito toda a esperança humana. Sobre toda alegria, para estrangulá-la, dei o salto surdo da fera. O infortúnio foi meu deus. Estendi- me na lama. Sequei-me ao ar do crime. E preguei peças à loucura. E a primavera me trouxe o pavoroso riso do idiota.
‘Permanecerás hiena’, exclamou o demônio e me coroou de tão gentis papoulas. Ganha a morte com todos os teus apetites, e o teu egoísmo e todos os pecados capitais. Ah! Foi o que fiz e por demais! — Todavia, caro Satã, por favor, tende para mim um olhar menos irritado! e, enquanto ficais à espera de umas tantas covardiazinhas em atraso, e, já que apreciais no escritor a ausência das faculdades descritivas ou instrutivas, destaco para vós estas poucas hediondas folhas de meu caderno de réprobo.”
Assim começa o relato de Uma Temporada no Inferno (tradução de Lêdo Ivo, Barléu Edições). Nesta deselegância poética, o caderno infame de um jovem de 16 anos (naquela época não existia adolescência), os criadores e militantes do movimento surrealista encontraram o farol para navegarem na maior aventura artística do século 20. Arthur Rimbaud foi aclamado como um gênio revolucionário e fonte de inspiração por toda uma geração de artistas e escritores. O poeta maldito por excelência inventou o verso-livre. Elevado à descendência direta do escritor Charles Baudelaire, a quem o jovem considerava “o rei dos poetas, um verdadeiro Deus”.
No filme Total Eclipse (1995), Agnieszka Holland (diretora polonesa) esculpiu o jovem Arthur na transbordante interpretação de Leonardo de Caprio. A narrativa acompanha a saga do irreverente camponês que decidiu inscrever seu nome na história da arte contemporânea com seu “caderno de réprobo”. O ponto de partida do filme é a carta de setembro de 1871: quando Rimbaud enviou seus escritos ao aclamado poeta Paul Verlaine que respondeu com Bem Vindo Alma Maravilhosa, Junte-se a Nós e uma passagem de trem. O trajeto do jovem chegando a Paris, da estação à casa de Verlaine (o poeta morava com os pais de sua esposa), foi reconstruído pela diretora com detalhes que traçam o cenário da capital francesa no final do século 19. O roteiro seguiu com precisão fidedigna centenas de cartas entre o jovem escritor e o reconhecido poeta. Eclipe Total: uma bela metáfora para nomear este encontro. Rimbaud o sol; Verlaine, a lua.
Albert Camus traçou a gênese da poesia revoltada (e maldita): Os Cantos de Maldoror, escrito por Isidore Ducasse (outro jovem de 16 anos que auto denominou- se Conde de Lautréamont) e, Uma Temporada no Inferno de Rimbaud. Deste manancial jorraram as correntezas da poesia moderna maldita.
No livro O Homem Revoltado, publicado em 1951, Camus caracterizou o surrealismo como um grande atalho na encruzilhada em que se encontravam a poesia revoltada no final do século 19. “Depois de Rimbaud, o surrealismo tentou encontrar na loucura e na transgressão uma regra de construção. Com sua obra, e tão somente com ela, Rimbaud indicou a direção, de tal forma fulgurante, tal como o um oráculo revela a fímbria de um caminho. O surrealismo esquadrinhou esse caminho e codificou suas referências. Tanto por seus excessos quanto por seus recuos, inventou uma teoria prática da revolta irracional. Foi sua última e suntuosa expressão. Seus inspiradores, Lautréamont e Rimbaud, ensinaram por que desfiladeiros o desejo irracional aparece para conduzir o revoltado às formas mais liberticidas de ação.”
No Primeiro Manifesto do Surrealismo, publicado em 1924, encontramos o diagnóstico do estado de sanidade da literatura e da poesia romântica moderna e a estadia no inferno de Rimbaud é invocada pela assertiva de que Satã, “aprecia no escritor a ausência das faculdades descritivas ou instrutivas”. Contra a abundância de romances, os surrealistas reivindicaram uma escrita literária que não fosse descritiva e que não tivesse valor de instrução moral.
Numa série de entrevistas radiofônicas, transmitidas em 1952, André Breton (o codificador do surrealismo) afirmou que toda a sua vontade de saber estava concentrada em Rimbaud e que se encontrava na época totalmente enfeitiçado por sua poesia. O caderno de réprobo foi sua companhia quando estagiário no Centro Psiquiátrico do 2º Exército em Saint-Dizier. Foi lá que começou a praticar o método de investigação da psicanálise com soldados em situação traumática. Lá também viveu sua estadia no inferno, onde a loucura mostra sua verdadeira face. Desta temporada, desta estadia, Breton retirou a força revolucionária para instaurar o surrealismo.
in: série “livros e lugares” – Caderno Cultura do Jornal de Piracicaba, 5/jan/2014