Na carta de 06/10/1909 Freud consolou o amigo húngaro: “Não se lamente por não ter perguntado à pitonisa Madame Seidler pelo futuro. Ele se renova constantemente, nem o bom Deus o conhece antecipadamente. Ela soube ler seus pensamentos e este fenômeno é notável. Por ora silencie a respeito; vamos fazer outros experimentos”.
A amigável relação de Freud & Ferenczi iniciou com as marcas de transmissão de pensamento, também conhecido como telepatia. Em alemão, a palavra übertragung pode significar: transmissão, transferência ou tradução. O aspecto etimológico é relevante para analisar o caráter emblemático que está em jogo no conjunto de mais de 1200 cartas cambiadas entre o psicanalista de Viena e o jovem médico contrato como perito de saúde pelo governo de Budapeste.
Sándor Ferenczi, transmissor da teoria freudiana, esteve em relação transferencial com Freud através das cartas e frequentando seu divã por três semanas diariamente, assumindo a função de tradutor do inconsciente do próprio mestre. Passador da psicanálise, foi também o primeiro a cumprir o preceito de que a formação do analista se realiza numa experiência intencional de análise.
A decisão de viajarem juntos à Sicília decorre dos eventos e laços de amizade (e fidelidade) vivenciados no 2º Congresso Internacional de Psicanálise em Nuremberg realizado em março/1910. Freud percebeu que as posições de Jung, a princípio escolhido como príncipe herdeiro, conduziria a inevitável ruptura e sua consequente deserção do movimento psicanalítico em 1914.
O empenho e entusiasmo do jovem médico húngaro durante o Congresso fez com que Freud apostasse nele suas esperanças de transmissão da jovem ciência revestida de arte: a psicanálise. No entanto, a produção teórica de Ferenczi foi subjulgada e condenada pela própria associação da qual foi um dos mais exaustivo organizador. Ter sido escolhido por Freud fez dele um ponto de convergência do ócio subjacente à irmandade dos psicanalistas.
Na Correspondência Freud & Ferenczi pode-se acompanhar, passo a passo, os preparativos da viagem. Desde o roteiro, passagens, hospedagem, vestuário, até as experiências clínicas, interesses de pesquisa e condição de saúde física e psíquica de cada um.
Freud estava vivendo o luto da ruptura com o amigo de juventude: Wilhelm Fliess, médico otorrinolaringologista de Berlim, considerado pelos historiadores como o parteiro da psicanálise. Pressentia que a amizade com Jung caminhava para derrocada final. Depositava em Ferenczi seu desejo de ter um interlocutor para aplicação da teoria do inconsciente à clínica de pacientes psicóticos, em especial, a paranoia.
Ferenczi vivia em estado melancólico e depressivo com produção de sintomas psicossomáticos. E a luta fratricida no movimento psicanalítico deixava o representante de Budapeste num conflito insolúvel: estar à altura da demanda do mestre, quer na produção de artigos sobre o componente homossexual na paranoia e na organização da Associação Internacional.
Ambos contam os dias para as férias no sul da Itália. “Todos os desejos concentram-se na viagem de setembro e ela é objeto de preparativos amorosos”, escreveu Freud em julho/1910. No mês seguinte, Ferenczi escreveu ao Caro Professor: “Peço que o Sr. disponha de mim a seu bel-prazer. Inútil enfatizar que, por mais que eu deseje rever a Itália, atribuo menos valor à viagem e mais à sua companhia e estou disposto a encontra-lo onde quer que seja”.
Em resposta, Freud expressou a grande expectativa da viagem: “Sicília será nosso maior momento. Concordo contigo: o importante é estarmos juntos. Espero que o Sr. me traga um final feliz para este amortecimento intelectual que me aprisiona no interior de um grande bem-estar”. Toda ascendente expectativa sofrerá um efeito reverso: a decepção e frustração em ambos.
Na primeira carta após a viagem, Freud declarou: “Acredite, guardo apenas recordações calorosas e simpáticas de sua companhia durante a viagem, embora tenha me causado pena por sua decepção e eu tenha desejado que o Sr. fosse diferente em alguns aspectos. Esperava que o Sr. se libertasse da condição infantil e que estivesse ao meu lado como um companheiro em pé de igualdade, o que não lhe foi possível. O Sr. estava inibido e procurando em mim um ideal a ser imitado. Estou farto de ser convocado a ocupar a função de mestre”.
Livros e Lugares – Caderno de Domingo – Jornal de Piracicaba – 07/jun/2015