Aniversariar é verbo intransitivo inventado na língua falada no Brasil. Amar tornou-se também intransitivo na lavra do escritor Mário de Andrade: Amar, Verbo Intransitivo. Amar e aniversariar só podem ser conjugados pelo sujeito em ato de radical singularidade: Eu aniversario. Tu aniversarias. Ele/Ela aniversaria.
Cada um pode aniversariar quando bem quiser. Não é preciso celebrar o nascimento só no dia em que se entrou no mundo. Isso porque, nascemos mais de uma vez e morremos outras tantas no decurso de nossas vidas. Neste exercício constante de morte e renascimento, vamos tecendo a rede de sentido e significação para o viver. Renascer é um exercício de liberdade: inventar-se com aquilo de que somos feitos. Aniversariar é comemorar renascimentos.
Em retrospectiva, reconheço os diversos renascimentos e aniversario cada um deles rememorando as alegrias de experiências transformadoras. Uma delas ocorreu na primeira viagem à Paris. Desde os tempos de colégio público, a história da Revolução Francesa exerceu sobre meu pueril espírito um poder libertador. O lema Liberdade, Igualdade, Fraternidade capturou-me de tal forma, decidindo minhas ações futuras. Para um jovem camponês do interior paulista, a conquista do ideal revolucionário francês era uma utopia sedutora e eu a perseguia com afinco.
Aterrissei em solo francês marcado pelo desejo, longamente cultivado, de reconhecer a cidade revolucionária. O Hotel Flaubert (próximo ao Arco do Trunfo) foi o ponto de ancoragem. Dois significantes que pressagiou a estadia: o livro Madame Bovary de Gustave Flaubert, minha iniciação na literatura francesa; e, estar naquele lugar, naquele momento, era o maior triunfo.
Na primeira noite, habitado por estado de exaltação, não consegui dormir. Pensava em tudo o que me aguardava nos dias ensolarados vindouros. Assim que o petit déjeuner foi servido, já estava em prontidão para caminhar, vaguear e perambular.
Paris é um convite a caminhar. Andar sem rumo nem direção: simplesmente ir e deixar-se absorver pelo espetáculo artístico e histórico, recolhendo os abençoados frutos do ócio cultivado. Em cada pedaço de chão um traço: marcas da história da cultura ocidental em igrejas, castelos, monumentos e museus, muitos museus.
Havia um roteiro previamente imaginado que foi dissolvido na travessia da célebre avenida Champs-Elysées. Do alto do Arco do Triunfo, monumento que celebra a glória de Napoleão, tem-se a mais exuberante imagem da charmosa avenida: cenário de grandes acontecimentos e desfiles patrióticos na Europa. O Imperador fazia questão absoluta de atravessá-la com sua tropa para demonstrar suas conquistas em expandir os ideais da Revolução Francesa. Nela também, Adopho Hitler consumou seu desejo mais profundo: conquistar Paris.
Tal como fazem os peregrinos, a viagem era também minha peregrinação. Sai do Brasil com o propósito de percorrer os lugares por onde Vincent Van Gogh viveu e os eternizou com sua genialidade no uso das cores e traços. De Paris à Arles, região da Provence, o trajeto seguiria seus passos e os cenários retratados.
O ponto de partida era o apartamento no bairro Montmartre, onde van Gogh foi morar com seu jovem irmão Théo, incentivador e protetor do irmão mais velho. A colina de Montmartre é o cenário da grande revolução impressionista. Vincent embarcou na Antuérpia e chegou em Paris, no início da primavera/1886, sem aviso prévio. Deixou sua maltrapilha bagagem na porta com o seguinte bilhete: “Meu caro Théo, não me censure por ter vindo de repente. Estarei no Louvre e espero você na Sala Quadrada. Sempre seu, Vincent”.
Os dois anos vividos em Paris foi um renascimento para o holandês de 35 anos. Sua paleta foi transformada pela embriaguez primaveril e pela embriaguez de absinto nos cafés de Montmartre. A obra do genial pintor pode ser dividida em um antes e depois da estadia na cidade luz.
A deusa Fortuna agraciou-me com a exposição especial das telas de Vincent no Museu do Orsay. As telas pertenciam ao acervo do próprio museu e outras cedidas pelo Van Gogh Museum de Amsterdã.
Lembro com emoção, o encontro com a tela A Noite Estrelada (junho/1889). Nela, Vincent fez suas estrelas brilharem sobre um fundo pontilhado que capturaram o vento. A irradiação luminosa permite ao expectador contemplar o movimento do vento por detrás de um cipreste incandescente. Com generosas pinceladas de branco, teceu a noite como um bordado. Naquele instante pude reconhecer a grandeza do gênio: capturar o vento noturno. As estrelas de Vincent representam a fugacidade do tempo no movimento do vento.
O pintor Camille Pissaro resumiu com elegância a identidade do grupo impressionista, declarando a um aprendiz: “Não tenha medo de usar a cor. Não se prenda a regras e princípios, pinte o que você observa e sente. Pinte generosamente e sem hesitações, pois é melhor não perder a primeira impressão. Não se intimide ante a natureza; precisamos ousar, com o risco de nos decepcionar e cometer erros”. Esta explosão de cores transformou a vida do iniciante holandês no mundo da pintura.
A vida urbana tornou-se um fardo insuportável para Vincent sendo invadido pela nostalgia da vida campestre. Partiu para o Midi (nome atribuído à região sul-sudeste da França) no final do inverno/1888 na esperança de acolher a primavera sob o sol do mediterrâneo. Desembarcou em Arles e alugou um quarto no piso superior do Restaurant Carrel, próximo à estação ferroviária, à margem do rio Rhône. A tela A Casa Amarela e as quatro telas retratando seu quarto eternizaram este lugar.
Ao chegar, escreveu à Théo enviando o endereço da nova residência: “Durante a viagem pensei muito em você e o quanto é impossível trabalhar em Paris; a cidade me entorpecia e estava afastando do meu desejo de ser um bom pintor. Cheguei com 60 centímetros de neve. Arles é uma região plana com magníficas terras vermelhas plantadas com vinhas, tendo ao fundo montanhas do mais delicado lilás. E as paisagens nevadas com cumes brancos contra um céu tão luminoso quanto a neve eram exatamente como as paisagens de inverno que os japoneses fazem”.
Dias depois, relatou ao irmão: “Há momentos em que sinto meu sangue voltando a querer circular em minhas veias, o que não era o caso dos últimos tempos em Paris; realmente eu não aguentava mais. Nestes dias, pintei uma velha mulher arlesiana, uma paisagem com neve e uma vista de um trecho de calçada com a loja de um salsicheiro. As mulheres são bem bonitas aqui. Esta geando muito e o campo continua nevado, estou trabalhando numa campina branca com a cidade ao fundo e um ramo de amendoeira já em flor apesar do tempo. Aqui em me sinto no Japão”.
As pinturas japonesas que encontrou em Paris e a chegada da primavera em Arles iluminaram a paleta de Van Gogh, definindo seu estilo e caráter. Na região da Provence, Vincent renasceu, novamente, como pintor de suas próprias impressões. Seguindo as pegadas do pintor através das cartas remetidas ao irmão em Paris e dos lugares retratados em suas telas, renasci como escultor de minha própria existência.
Marcio Mariguela é psicanalista; graduado e especialista em filosofia; doutor em psicologia da educação pela Unicamp
Revista Arraso / Edição de Aniversário (7 anos); Ano 7; nº 52; 1º semestre/2015; publicação do Jornal de Piracicaba; ilustração: Erasmo Spadotto