Esquecer e recordar: um drama psíquico

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O esquecer é um ato corriqueiro quando não está ligado a patologias específicas. Quem nunca esqueceu nomes, lugares, objetos? Há casos trágicos frequentes de pais que esquecem os filhos trancados no carro. Os lapsos da memória nos colocam em situações embaraçosas. Esquecer e recordar são atuações psíquicas que encenam a condição existencial do sujeito.

No livro Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana, publicado em 1901, Sigmund Freud analisou o esquecimento de nome próprio como exemplo para demonstrar o funcionamento psíquico dos seres humanos. Contou um lapso da memória que lhe ocorreu quando tentava, em vão, lembrar o nome do pintor renascentista Luca Signorelli.

Numa viagem de férias pela Itália em agosto/1898, decidiu navegar pelo mar Adriático e escolheu Ragusa, a bela cidade siciliana, como ponto de ancoragem para outros passeios pela região. Num deles, estava no coche um advogado de Berlim com o qual conversava sobre fotografias e aproveitou para recomendar ao interlocutor que visitasse a Catedral de Orvieto com o propósito de contemplar os afrescos do ciclo do fim do mundo e do juízo final pintados por…. “O nome do pintor me escapava e não houve jeito de lembrá-lo. Forcei a memória, passei em revista a todos os detalhes dos dias em Orvieto e pude constatar que nenhum deles se atenuava ou se apagara. Conseguia, aliás, representar as imagens de forma mais viva do que normalmente consigo”.

As imagens mais vivas que impregnaram o esquecimento do nome do pintor estavam associadas à visão da cena A ressurreição da Carne, pintada por Signorelli na capela de San Brizio na catedral de Orvieto, região da Úmbria. A catedral sobreviveu as guerras permanecendo intocável através dos tempos. Signorelli tornou a figura humana uma entidade arquitetónica capaz de expressar uma dramaticidade sem igual. Foi nestas cenas que Michelangelo se inspirou, anos depois, para compor sua versão do Juízo Final no altar mor da capela Sistina.

Na cena A Ressurreição da Carne, Freud encontrou o significante que inscreveu o conflito psíquico vivido por ele quando de sua visita a Orvieto. O lapso de memória é revelador de sua condição existencial e, ao mesmo tempo, do ato de fundação da teoria psicanalítica.

Antes da travessia, escreveu ao amigo Wilhelm Fliess: “Hoje, ao meio dia, partirei com Martha para o Adriático; se vamos ficar em Ragusa, Grado, ou algum outro lugar, será decidido no caminho”. Se encontrava abatido por não encontrar um substrato anatomo-fisiologico para sua escuta clínica dos sintomas histéricos: “o segredo dessa inquietação é a histeria”, continuou a narrativa da carta. “Na inatividade daqui esta inquietação passou a me oprimir pesadamente a alma. Agora, meu trabalho me parece ter muito menos valor e minha desorientação parece completa”.

Citou o provérbio, “quem procura acha, frequentemente, muito mais do que deseja” para chegar à seguinte conclusão: “A consciência é apenas um órgão sensorial; todo conteúdo psíquico é apenas representação; todos os processos psíquicos são inconscientes”.

Ao retornar da viagem à Itália, escreveu novamente a Fliess: “a minha psicologia esta suspensa no ar, sem uma base orgânica”. Freud não encontrava um modo de ajustar a sua escuta clínica com os pressupostos da neuro-fisiologia de seu tempo: “não sei como prosseguir, preciso comportar-me como se apenas o psicológico estivesse em exame. Por que não consigo encaixá-los [o orgânico e o psíquico] é algo que nem sequer começei a imaginar”.

Se o esquecimento é próprio da atividade psíquica, sua função é recordar que a memória e a consciência se excluem mutuamente. Há uma memória que não é acessível pela lembrança consciente: nela estão inscritos, como traços mnêmicos, nossas vivencias de dor e prazer. Recordar pelo esquecimento é inserir-se num jogo de significação que torna a vida um influxo de forças oriundas do passado e projetivas de futuro.

Fonte:
Revista Arraso / Estilo
Ano 8; nº 62; 1º semestre/2016
Ao Gato Preto Editora – Piracicaba/SP
Ilustração: Maria Luziano