Ma?rcio Mariguela
Psicanalista,
graduado em Filosofia e
Doutor em Psicologia da Educac?a?o pela Universidade Estadual de Campinas
mmariguela@gmail.com.br
marciomariguela.com.br
1 – Prelu?dio
“Nos u?ltimos anos, dediquei-me principalmente a ana?lises dida?ticas”
Sigmund Freud / 1937
“Querido Wilhelm,
Minha autoana?lise, e? de fato, a coisa mais essencial que tenho no momento, e promete transformar-se em algo do maior valor para mim, se chegar a seu te?rmino”Sigmund Freud / 15/10/1897
Quarenta anos se passaram entre as duas epi?grafes e, neste tempo, a relac?a?o entre Sigmund Freud e seus amigos e? um aprazi?vel tema de investigac?a?o e pesquisa para aqueles demonstram um compromisso e?tico com causa/coisa freudiana.
Freud e seus amigos: de Breuer a? Fliess; de Fliess a? Jung; de Jung a? Ferenczi.
Em seu conjunto, a Corresponde?ncia Sigmund Freud & Sandor Ferenczi abrange o peri?odo de 1908 a 1933. Sa?o mais de 1200 cartas, carto?es, telegramas a recobrir um longo e ininterrupto trabalho de construc?a?o da obra freudiana, da cli?nica psicanali?tica e de sua extensa?o, instituic?a?o e internacionalizac?a?o do movimento psicanali?tico.
Freud escreveu em 1937 o caso Ferenczi num u?nico para?grafo do artigo Ana?lise Finita e Infinita. No entanto, e? possi?vel trac?ar a genealogia do caso desde a primeira carta que registra o encontro decisivo entre o criador da psicana?lise e o jovem medico de Budapeste.
Efetivamente, Ferenczi frequentou o diva? de Freud durante tre?s semanas em outubro de 1914 e tre?s semanas em junho 1916, em ambos com duas sesso?es dia?rias. Uma ana?lise intensiva para cumprir a exige?ncia institui?da da ana?lise dida?tica no III Congresso da Associac?a?o Psicanali?tica Internacional em 1911: quem desejasse praticar a psicana?lise deveria submeter-se a uma experie?ncia de ana?lise com psicanalista reconhecido da primeira gerac?a?o.
Freud recebeu em ana?lise dida?tica aqueles que ja? estavam atuando na causa da psicana?lise e na cli?nica psicanali?tica. E, dada sua condic?a?o primeira, tornou- se a refere?ncia para praticar o que foi nomeado exige?ncia institucional. Pretendo demonstrar que as sesso?es de Ferenczi com Freud cumpria primeiramente a tal exige?ncia e, para ale?m disso, a verdadeira experie?ncia de ana?lise de Ferenczi pode ser cartografada ao longo das cartas que nos foi transmitida desde o primeiro encontro em 1908. Para sustentar tal argumento escolhi como exemplo a carta de 26/dezembro/1912.
2 – A viagem a? Sici?lia: a demanda de amor
O trabalho de pesquisa com as cartas que antecedem a experie?ncia de ana?lise de Ferenczi no diva? de Freud demonstra que efetivamente tal experie?ncia iniciou depois da viagem que ambos realizaram a sul da Ita?lia, na mi?tica ilha siciliana. Vou destacar alguns aspectos histo?rico desta importante viagem dentre outras tantas que realizaram juntos.
A amiga?vel relac?a?o de Freud & Ferenczi iniciou com as marcas de transmissa?o de pensamento, tambe?m conhecido como telepatia. Em alema?o, a palavra u?bertragung pode significar: transmissa?o, transfere?ncia ou traduc?a?o. O aspecto etimolo?gico e? relevante para analisar o cara?ter emblema?tico que esta? em jogo no conjunto das cartas cambiadas entre o psicanalista de Viena e o me?dico contratado como perito de sau?de pelo governo de Budapeste.
Sa?ndor Ferenczi, transmissor da teoria freudiana, veio assumir a func?a?o de tradutor do inconsciente do pro?prio mestre. Passador da psicana?lise, foi tambe?m um dos pioneiros a cumprir o preceito de que a formac?a?o do analista se realiza numa experie?ncia intencional de ana?lise.
A decisa?o de viajarem juntos a? Sici?lia decorre dos eventos e lac?os de amizade (e fidelidade) vivenciados no 2o Congresso Internacional de Psicana?lise em Nuremberg realizado em marc?o/1910. Freud percebeu que as posic?o?es de Gustav Jung, a princi?pio escolhido como pri?ncipe herdeiro, conduziria a inevita?vel ruptura e sua consequente deserc?a?o do movimento psicanali?tico em 1914. O empenho e entusiasmo de Ferenczi, na e?poca com 37anos de idade, durante o Congresso, fez com que Freud apostasse nele suas esperanc?as de transmissa?o da jovem cie?ncia revestida de arte: a psicana?lise.
No entanto, sua produc?a?o teo?rica foi subjugada e condenada pela pro?pria Associac?a?o da qual foi um dos mais exaustivo organizador. Ter sido escolhido por Freud fez dele um ponto de converge?ncia do o?dio subjacente a? irmandade dos psicanalistas.
Na Corresponde?ncia Freud & Ferenczi pode-se acompanhar, passo a passo, os preparativos da viagem ao sul da Ita?lia. Desde o roteiro, passagens, hospedagem, vestua?rio, ate? as experie?ncias cli?nicas, interesses de pesquisa e condic?a?o de sau?de fi?sica e psi?quica de cada um.
Freud vivencia o luto da ruptura com o amigo de juventude: Wilhelm Fliess, me?dico otorrinolaringologista de Berlim, considerado pelos historiadores como o parteiro da psicana?lise. Pressentia que a amizade com Jung caminhava para derrocada final. Depositava em Ferenczi seu desejo de ter um interlocutor para
aplicac?a?o da teoria do inconsciente a? cli?nica de pacientes psico?ticos, em especial, a paranoia.
Ferenczi vivenciava um estado melanco?lico e depressivo com intensa produc?a?o de sintomas psicossoma?ticos. A luta fratricida no movimento psicanali?tico deixava o representante de Budapeste num conflito insolu?vel: estar a? altura da demanda do mestre: na produc?a?o de artigos sobre o componente homossexual na paranoia e na organizac?a?o da Associac?a?o Internacional.
Ambos contam os dias para as fe?rias na Sici?lia: “todos os desejos concentram- se na viagem de setembro e ela e? objeto de preparativos amorosos”, escreveu Freud em julho/1910. No me?s seguinte, Ferenczi escreveu ao Caro Professor:
“Pec?o que o Sr. disponha de mim a seu bel-prazer. Inu?til enfatizar que, por mais que eu deseje rever a Ita?lia, atribuo menos valor a? viagem e mais a? sua companhia e estou disposto a encontra-lo onde quer que seja”.
Em resposta, Freud expressou a grande expectativa da viagem:
“Sici?lia sera? nosso maior momento. Concordo contigo: o importante e? estarmos juntos. Espero que o Sr. me traga um final feliz para este amortecimento intelectual que me aprisiona no interior de um grande mal-estar”.
Toda ascendente expectativa sofrera? um efeito reverso: a decepc?a?o e frustrac?a?o em ambos. Desde os tempos de adolesce?ncia, quando Freud leu o relato de viagem do poeta Goethe ao sul da Ita?lia, cultivava o desejo de conhecer Na?poles e Palermo.
“Palermo foi uma orgia inaudita, que na?o se deveria conceder apenas a si mesmo”
escreveu Freud a? sua amada esposa Martha. Apo?s quinze dias vagando pela capital da Sici?lia, decidiu visitar Agrigento e Siracusa: espe?cie de santua?rios da antiga civilizac?a?o grega.
Antes de partir ao encontro dos templos gregos no extremo sul da ilha siciliana, Freud escreveu um solene juramento na carta a? Martha:
“Prometo solenemente que, durante as iminentes fainas do ano, recordarei sempre que ja? recebi e consumi a minha melhor parte nesta vida. Estar aqui e? o coroamento de que ja? realizei ate? agora. Ainda na?o tinha visto o conjunto com tanto esplendor, tantos panoramas, perfumes e tanto bem-estar. Tenho daqui a visa?o de si?ntese. Ainda desejo encontrar em Siracusa algo de bom. Para na?o dizer que estou feliz e assim despertar a inveja dos deuses, digo-lhe que hoje lemos noti?cias sobre o co?lera em Na?poles”(1).
(1) RICCI, G. As cidades de Freud, p.154
No final da viagem, relatou a Jung:
“A viagem foi rica e substanciosa e satisfez diversos desejos, o que ha? muito tempo era necessa?rio para a economia psi?quica. A Sici?lia e? a regia?o mais bela da Ita?lia e conservou trechos verdadeiramente u?nicos da antiguidade grega desaparecida, reminisce?ncias infantis que permitem extrair concluso?es a respeito do complexo de E?dipo”(2).
(2) RICCI, G. Idem, p.154
Na Sici?lia, Freud encontrou a ge?nese da civilizac?a?o ocidental e, ao mesmo tempo, a ge?nese de seu percurso, desde os Estudos sobre Histeria (1895) ate? o Totem e Tabu que foi gestado durante a viagem e publicado em 1914. De igual modo, foi a realizac?a?o de um sonho: percorrer os lugares visitados e narrados por Goethe: os templos da Concordia, de Juno, de Ju?piter, de He?rcules, de Escula?pio. As mais preservadas reminisce?ncias da infa?ncia da civilizac?a?o ocidental.
Enquanto Freud tinha sua singular perspectiva da viagem, o companheiro estava capturado num conflito irreduti?vel: ser o disci?pulo/filho ou o amigo liberto do ideal identificato?rio com a figura do mestre/pai. Inibido e assolado pela angu?stia na?o conseguiu usufruir da paisagem e nem dos encantos da mi?tica ilha. Passou os dias deprimido e macambuzio, capturado pela du?vida neuro?tica de na?o corresponder a?s expectativas do mestre.
O retorno foi marcado por um sile?ncio epistolar. Ferenczi tomou a iniciativa de escrever (28/09/1910):
“Lamento na?o ter sido um companheiro a? altura do que o Sr. desejava. Minha demanda neuro?tica de ter um pai e ser educado por ele estragou o passeio. Espero que, apesar disso, possa continuar desfrutando de sua ama?vel companhia. Por ora, gostaria apenas de dar um sinal de vida e agradecer de corac?a?o os esforc?os que o Sr. tem feito como comandante da viagem”.
Freud respondeu com amabilidade dizendo guardar apenas
“recordac?o?es calorosas e simpa?ticas de sua companhia durante a viagem, embora tenha me causado pena por sua decepc?a?o e eu tenha desejado que o Sr. fosse diferente em alguns aspectos. Esperava que o Sr. se libertasse da condic?a?o infantil e que estivesse ao meu lado como um companheiro em pe? de igualdade, o que na?o lhe foi possi?vel. O Sr. estava inibido e procurando em mim um ideal a ser imitado. Estou farto de ser convocado a ocupar a func?a?o de mestre”.
Diante da franqueza de Freud, a resposta de Ferenczi e? um dos mais expressivos exemplos da relac?a?o transferencial anali?tica em atuac?a?o no conjunto da Corresponde?ncia. Primeiro, reconheceu que a interpretac?a?o de Freud sobre a demanda infantil estava correta e, lamentou-se:
“foi uma terri?vel falta de considerac?a?o de minha parte estragar suas merecidas fe?rias. Esperar que o Sr. me educasse como um pai, mostrando a mim os meus defeitos, foi demasiado inoportuno. Prometo me esforc?ar para estar em pe? de igualdade e ser-lhe um amigo fiel”.
Esforc?ou-se tanto que veio morrer de exausta?o aos sessenta anos em 1933. No obitua?rio, Freud reconheceu a fidelidade do amigo e a felicidade de contar com sua ama?vel presenc?a:
“Por va?rios anos passamos as fe?rias de outono na Ita?lia e va?rios ensaios que fazem parte da literatura psicanali?tica nasceram nestes passeios. E? impossi?vel imaginar que a histo?ria da nossa cie?ncia o esquec?a algum dia”.
3 – A ruptura do tria?ngulo
A solicitac?a?o expli?cita e intencional de ana?lise, formulada na carta de 26/12/1912, so? foi possi?vel quando a triangulac?a?o Freud-Jung-Ferenczi se rompeu. Ha? uma seque?ncia de cartas de Freud que antecedem a famosa carta de dezembro nas quais anuncia a ruptura com Jung e e? importante resgatar o teor dos predicados atribui?dos por Freud e o modo como instiga Ferenczi a descartar tambe?m Jung.
Enquanto Ferenczi relatava sua ladainha de sintomas conversivos, Freud estava ocupado com sua relac?a?o com Jung. Na carta de 28/07/1912 encontramos:
“sigo com interesse todos os relatos sobre seus acontecimentos mais i?ntimos, mas continuo pensando que o u?nico dever de amigo e? deixa?-lo em paz (…) no que diz respeito a Jung, agora esta? tudo totalmente claro”.
Reproduziu uma breve carta recebida de Jung e conclui:
“de ini?cio na?o responderei, vou deixar passar algumas semanas e na?o fazer absolutamente nada, o que facilita uma ruptura formal. Vamos ver. (…) Jung esta? numa neurose galopante. Seja como for que isso acabe, minha intenc?a?o de fundir judeus e goym (3) a servic?o da psicana?lise parece-me, neste momento, fracassada. Eles se separam como agua e o?leo. Voce? deve estar muito satisfeito com minha maneira de ver tudo isso. Estou a? vontade, totalmente imparcial e intelectualmente em posic?a?o de superioridade”.
(3) Na li?ngua hebraica, goyim significa gado, povo, plebe. Diz-se da pessoa que na?o e? judia, de outras religio?es.
Ferenczi capturou a mensagem e respondeu (06/08/1912):
“depois de tudo o que conhec?o do comportamento de Jung, sua declarac?a?o de guerra oficial foi capaz de me entristecer, mas na?o de surpreender (…) ele trata a psicana?lise como se fosse um assunto pessoal entre voce?s dois e na?o algo objetivo e cienti?fico (…) alegro-me muito que tenha aceito ta?o facilmente a defecc?a?o de Jung. Isso me prova que seu desesperado esforc?o em criar um sucessor pessoal foi definitivamente deixado de lado e que o Sr. abandonou a causa da psicana?lise a sua pro?pria sorte, depois de ter feito tudo o que lhe foi possi?vel”.
Na carta de 12/08/1912 Freud inscreveu o tom para o que estava acontecendo e fez a primeira menc?a?o a? formac?a?o do Comite? Secreto pela vigila?ncia do desenvolvimento da psicana?lise:
“do reino cienti?fico: creio que a psicana?lise permite que se reconhec?am dois esta?gios origina?rios da organizac?a?o humana: a horda do pai e o cla? dos irma?os [refere?ncia clara ao Totem e Tabu ainda em germe]. Este u?ltimo desenvolve a primeira religia?o, o totemismo, pore?m, e? a obedie?ncia a posteriori aos mandamentos da primeira fase. Assim, o pai e? inicialmente vencido; como pouco a pouco os irma?os unidos foram eles mesmos se tornando pais, o pai retorna, mas agora provavelmente como Deus”.
Na carta de 21/10/1912 Ferenczi iniciou sua cri?tica as posic?o?es de Jung no campo da psicana?lise e em especial sua concepc?a?o de libido, afirmando que ele na?o tinha o menor conhecimento do que e? o inconsciente. Na carta seguinte (25/10), a artilharia de Budapeste continuou:
“como foi possi?vel que tive?ssemos deixado passar despercebidos os processos de pensamento paranoicos presente na concepc?a?o de libido formulada e Jung. A cada momento ele sai dos trilhos da observac?a?o cienti?fica e se transforma em fundador de religia?o. Sua preocupac?a?o na?o e? a teoria da libido, mas a salvac?a?o da comunidade crista?. Ele identifica a confissa?o com a terapia psicanali?tica e na?o quer renunciar a homossexualidade (comunidade crista?) e prefere detestar a sexualidade e goza em ser adorado pelos crista?os. Ele se encontra numa confusa?o incura?vel de complexos mitolo?gicos”.
Conclui afirmando que ainda na?o se encontra bem de sau?de e na?o tinha nenhuma pista sobre sua suposta si?filis – cro?nica queixa hipocondri?aca a percorrer va?rias cartas.
Ao que Freud respondeu (27/10):
“e? supe?rfluo dizer que suas observac?o?es sobre Jung me parecem totalmente evidentes, so? que uma parte da cri?tica precisaria ser feita de outra maneira”.
Um me?s depois, na carta de 26/11, Freud informou sobre o
“conci?lio de Munique”
relatando a longa conversa que teve com Jung:
“eu na?o lhe poupei de nada, disse-lhe calmamente que uma amizade com ele na?o poderia ser mantida, que ele mesmo havia evocado uma intimidade com a qual viria a romper ta?o brutalmente depois; que ele na?o estava bem com o Homem, o masculino, em geral, na?o apenas comigo, mas tambe?m com os outros; que ele repelia a todos depois de um certo tempo”.
Jung acompanhou Freud ate? a estac?a?o de embarque, despediu-se com as u?ltimas palavras:
“o Sr. me encontrara? sempre devoto a? causa da psicana?lise”.
No trem, Freud teve uma crise de angu?stia e desmaiou por um momento:
“mas eu mesmo me levantei e por um tempo tive na?useas que a? noite se transformaram em uma dor de cabec?a e bocejos, um resi?duo de meus males de vera?o. Na noite de volta a Viena, dormi muito bem e cheguei aqui muito tranquilo”.
Ferenczi respondeu (28/11):
“considero correta a sua interpretac?a?o do comportamento de Jung; o nu?cleo de falsidade, sobre a qual o Sr. falou com ele, deve tambe?m ser o nu?cleo de sua neurose”.
Em 07/12 voltou a escrever relatando seu histo?rico de sintomas conversivos para concluir:
“se houve um fator psi?quico na patoge?nese de minha doenc?a e se o seu objetivo foi o de reaproximar-me de Frau G., enta?o a doenc?a cumpriu seu dever (…) espero que pouco a pouco eu possa relatar mais da cie?ncia e menos de doenc?as”.
Ao que Freud respondeu (09/12):
“na?o acredito, nem por nenhum instante em sua si?filis. Ha? um trac?o hipocondri?aco evidente na histo?ria de sua doenc?a”;
e engatou novamente a querela com Jung:
“ele e? um doido, suas cartas oscilam entre a ternura e a arroga?ncia presunc?osa e todos os relatos mostram que ele considera seus erros como grandes descobertas”.
Na carta de 23/12 Freud desejou-lhe uma feliz natal e urgente recuperac?a?o “desta entediante histo?ria” de doenc?as irremedia?veis do amigo hu?ngaro que serviam como justificativas defensivas frente a demanda de trabalho que a causa exigia.
Na seque?ncia, enviou em anexo
“a insolente e inaudita carta”
que recebeu de Jung dizendo que iria tomar o partido de Freud na disputa com Adler:
“ele realmente quer me provocar de modo que a culpa do rompimento recaia sobre mim e dizer que eu na?o suporto a ana?lise (…) ele se contra como um palhac?o extravagante e um tipo brutal, o que de fato ele e? (…) minha construc?a?o da refeic?a?o tote?mica se confirma na pra?tica: de todos os lados, os irma?os caem sobre mim e, sobretudo, e? claro, os fundadores de religio?es (…) na crise atual na?o quero prejudicar a existe?ncia de nossa publicac?a?o. Mas acho que Jung teme a dissoluc?a?o da Associac?a?o mais do que nos, e agora quer me absorver a partir da Associac?a?o. Permanecerei muito reservado, mas aceito de bom grado os conselhos que me der”
4 – O pedido de analise intencional
E? neste chamado que se insere a carta de 26/12/1912; na qual Ferenczi formulou o pedido de ana?lise intencional com Freud. Antes de formular o pedido explicitamente, forneceu os conselhos solicitados:
“O comportamento de Jung e? de uma impertine?ncia inaudita. Esqueceu de que foi ele pro?prio que exigiu a? comunidade anali?tica o tratamento dos alunos como pacientes e condic?a?o necessa?ria para que os mesmos viessem a praticar a psicana?lise. Mas quando se trata dele, na?o quer mais fazer valerem as regras por ele proposta. Agora ele pretende ficar fora das regras por considerar a ana?lise mu?tua um absurdo e marcada por uma impossibilidade. Ele quer ser a excec?a?o a? regra. Cada um de no?s deve ser capaz de suportar uma autoridade sobre si, da qual aceita as correc?o?es anali?ticas. O Sr. e? mesmo o u?nico que se pode permitir renunciar a um analista. O Sr. e? a u?nica excec?a?o por na?o ter a? sua disposic?a?o um analista igual ou ainda superior; pra?tica a ana?lise ha? mais de quinze anos e armazenou experie?ncias que ainda nos falta. Apesar de todos os defeitos da autoana?lise, devemos esperar do Sr. a capacidade de controle sobre seus sintomas. Mas o que vale para o Sr. na?o vale para no?s.
E agora, vamos a mim. Tambe?m sou um caso a ser tratado – mas em mim ha? um progresso inega?vel, na medida em que tenho conscie?ncia disso. Minha intenc?a?o e? de muito em breve entrar em ana?lise com o Sr. De ini?cio por umas duas ou tre?s semanas. Alguns dados poderiam orienta-lo sobre mim”.
A carta segue com um extensivo relato sobre sua histo?ria desde a infa?ncia com minu?cias que demonstram a seletividade de fatores que supostamente seriam preliminares a ana?lise demandada no futuro de um prete?rito imperfeito. Ferenczi concluiu a missiva:
“Perdoe-me por esta ana?lise gratuita que lhe extorqui (mesmo que por escrito)”.
A resposta de Freud em 30/12 iniciou com o desejo de um feliz ano novo, embora provavelmente muito difi?cil:
“acreditara? ou ficara? zangado pelo fato de que li sua carta auto anali?tica, mas ainda na?o a tenha refletido como deveria? Assim, eu em parte frustrei suas intenc?o?es neuro?ticas. Ou seja, poder extorquir algo de mim!”.
Contou que escrevia apo?s retornar do teatro onde foi assistir a opera Don Giovani de Mozart e que teve forte identificac?a?o com a cena do banquete entre o hero?i e o fantasma do comendador. Nela reconheceu seu estado e a situac?a?o do movimento psicanali?tico:
“A carta a Jung na?o foi enviada. Que se dane! Na?o preciso dele e de sua amizade. Se me restarem quatro ou cinco auxiliares, afrontarei a situac?a?o ta?o bem quanto antes, quando tive de enfrentar as resiste?ncias sozinho”.
Nas cartas seguintes, nenhuma palavra sobre o relato?rio auto anali?tico de Ferenczi. Freud estava muito ocupado com sua situac?a?o com Jung. Em 05/01/1913, fez um comunicado importante:
“Fico feliz em saber que o Sr. esta? bem neste momento atual que nos e? ta?o necessa?rio ficarmos bem. Comunico- lhe que encontrei boas e educadas frases, embora inequi?vocas, para interromper as relac?o?es privadas com Jung. As atitudes dele revelam o quanto e? um patife neuro?tico. Se ele estivesse em tratamento comigo e pagando por ele, eu teria de lidar com o que ele diz, mas assim, posso poupar-me e utilizar minhas forc?as em outras coisas”.
As boas e educadas frases utilizadas de forma inequi?vocas por Freud foram enviadas a Jung no dia 03/01:
“esta? combinado entre no?s, analistas, que nenhum de no?s deve se envergonhar de seu pedac?o de neurose. Mas aquele que, se conduzindo de forma sintoma?tica, apresenta-se como modelo de normalidade, desperta a desconfianc?a de que lhe falta a conscie?ncia de sua condic?a?o neuro?tica. Desse modo, na?o me resta mais nada do que romper definitivamente nossas relac?o?es privadas”.
A resposta de Jung, que se cruzou com a carta de Freud no mesmo dia em que foi remetida, diz o seguinte:
“oferec?o ao Sr. os mesmos cuidados psicanali?ticos que o Sr. por vezes me oferece”.
5- Ferenczi analista didata de Ernest Jones
Uma das primeiras experie?ncias de ana?lise dida?tica foi realizada com quem na?o havia passado pela pro?pria vivencia de ana?lise intencional. Entre junho e julho de 1913, Ernest Jones realizou duas sesso?es dia?rias de ana?lise dida?tica com Ferenczi por recomendac?a?o de Freud que na e?poca era analista da esposa de Jones e cujo desfecho foi a separac?a?o do casal. Note-se que Freud o colocou nesta condic?a?o sem que o mesmo tivesse ainda uma experie?ncia formal de ana?lise.
Na carta de 04/05/1913 Freud escreveu ao amigo hu?ngaro que achava melhor ele esperar para iniciar a ana?lise e considerou 4 ou 6 semanas tempo insuficiente; julgava mais oportuno
“na?o privar um de meus assistentes mais indispensa?veis ao perigo do distanciamento das pessoas devido a ana?lise”.
Reafirmou sua convicc?a?o de que os sintomas relatados por Ferenczi na?o tinham causalidade orga?nica e sua queixa neuraste?nica hipocondri?aca encontraria no trabalho intelectual uma forma de deslocamento. Freud protelou o quanto pode em aceitar Ferenczi em seu diva?.
Na mesma carta confessou sua preocupac?a?o em relac?a?o a Jones:
“na?o sei como ele ira? suportar saber que sua mulher, por causa da ana?lise, na?o quer mais ser sua mulher. Deve-se supor dai? que as mulheres sa?o mais inteligentes do que no?s e que, com raza?o, obrigam-nos a seguir suas vontades e desejos?”.
Na carta de 07/06/1913 Ferenczi fez o primeiro relato da ana?lise com Jones:
“acho que dara? certo a ana?lise com Jones. No momento, ele interpreta demais e so? fornece material antigo, que ja? lhe e? conhecido, a transfere?ncia ele ja? trouxe consigo para o tratamento e se esforc?a por ser sincero”.
A resposta de Freud veio no dia seguinte:
“alegra-me saber que Jones comec?a bem. Seja ri?gido e terno com ele. E? uma boa pessoa. Alimente a ninfa, de modo que ela possa transformar-se numa rainha (deusa)”.
Nas cartas seguintes o caso Jones foi narrado com certo entusiasmo mu?tuo e entremeios a? leitura que Freud solicita de ambos (analista e analisando) sobre a redac?a?o final do Totem e Tabu. Em 17/06, Ferenczi acusou o recebimento das primeiras migalhas do banquete tote?mico e se disse incapaz de oferecer alguma contribuic?a?o pois se tratava de um assunto inteiramente novo para ele.
“Jones e? muito agrada?vel como amigo e colega. Na ana?lise, seu excesso de bondade age como obsta?culo. Ele parece temer que eu conte ao Sr. tudo o que fico sabendo na ana?lise. Ja? o vejo um pouco menos modesto, isto e?, mais sincero”.
Dias depois (23/06) voltou a relatar sua impressa?o sobre o Totem e Tabu dizendo que ele e Jones estavam lendo em conjunto; concluindo estar totalmente seguro que este trabalho se tornaria um dia o
“ponto modal da cie?ncia da histo?ria da cultura humana”.
Terminou a carta expressando:
“Jones e? meu melhor e mais querido paciente: e? aplicado, obediente e? um amigo realmente confia?vel; acho que poderemos construir alho apoiados nele. O breve peri?odo de resiste?ncia foi substitui?do por bons progressos”.
Na carta de 05/08 Ferenczi comunicou a Freud que Jones o deixou a quatro dias e confessou sentir muito a falta dele:
“tornamo-nos amigos i?ntimos; aprendi a ama?-lo e estima-lo; foi um prazer ter um aluno assim ta?o inteligente, fino e distinto. A ana?lise teve um efeito muito favora?vel sobre ele. Suas convicc?o?es adquiriram uma fundamentac?a?o mais so?lida, sua independe?ncia aumentou e, provavelmente, tambe?m aumentou a coragem para um pouco mais de originalidade. Espero que ele obtenha o domi?nio sobre suas tende?ncias neuro?ticas a partir de agora”.
Tre?s meses depois Ferenczi escreveu a Freud para dizer que Jones anunciava a fundac?a?o da Sociedade de Psicana?lise de Londres na qual assumiria a func?a?o de presidente.
6 – O caso Ferenczi nomeado por Ernest Jones
Construc?o?es em Ana?lise e Ana?lise Termina?vel e Intermina?vel sa?o os u?ltimos escritos te?cnicos de Freud escrito dois anos antes de morrer. E? uma espe?cie de testamento cli?nico de Freud que demonstram suas posic?o?es como psicanalista no crepu?sculo de sua existe?ncia.
O ensaio cli?nico Ana?lise Termina?vel e Intermina?vel4 deixa no leitor a impressa?o de um certo pessimismo schopenhauriano no que diz respeito a efica?cia terape?utica da psicana?lise. Desde o ini?cio da de?cada de 1930, Freud afirmou em va?rias passagens que nunca fora um terapeuta entusiasmado na cura dos sintomas neuropsico?ticos.
Examinava com rigor as dificuldades pra?ticas e teo?ricas de terapia teleologicamente dirigida pela cura. Se na?o ha? cura, por certo ha? tratamento. A questa?o permanece: o tratamento e?tico exigido pela psicana?lise tem ou na?o um fim?
Neste aspecto, e? preciso distinguir fim e finalidade: fim e? submetido aqui a? lo?gica da temporalidade na?o cronolo?gica; finalidade tem relac?a?o com te?los (fim, finalidade, conclusa?o, acabamento, realizac?a?o, cumprimento) (5). Termina?vel ou na?o depende da concepc?a?o teleolo?gica que se tem da terape?utica adjetivada psicanali?tica.
(4) Vou adotar esta traduc?a?o escolhida por Jacques Lacan para o ti?tulo do ensaio de Freud sobre a questa?o do fim da ana?lise. Na edic?a?o Standard Brasileira das Obras Completas publicado pela Imago o ti?tulo e? Ana?lise Termina?vel e Intermina?vel (1937).
(5) O voca?bulo Te?los em grego e? o que permite avaliar ou determinar o valor e a realidade de alguma coisa.
Logo no ini?cio do ensaio, Freud recorreu [como sempre alia?s] a? experie?ncia como seu mestre e guia:
“ela nos ensinou que a terapia psicanali?tica – a libertac?a?o de algue?m de seus sintomas, inibic?o?es e anormalidades de cara?ter neuro?tico – e? assunto que consome tempo. Dai?, desde o comec?o, tentativas terem sido feitas para encurtar a durac?a?o das ana?lises”.
Citou o livro de Otto Rank, O Trauma do Nascimento (1924), dizendo que os argumentos do autor eram audazes e engenhosos, mas na?o suportou o teste do exame cri?tico [ver o artigo Inibic?a?o, Sintoma e Angu?stia escrito em 1926]. Considerou o livro de Rank produto de seu tempo,
“concebido sob a tensa?o do contraste entre a mise?ria do po?s-guerra na Europa e prosperidade dos EUA, projetado para adaptar o ritmo da terapia anali?tica a? pressa da vida americana (tempo e? dinheiro)”
A ironia de Freud compareceu:
“na?o sabemos muito o que o plano de Rank fez pelos casos de doenc?a. Provavelmente na?o fez mais do que faria o Corpo de Bombeiros se, chamado para socorrer uma casa em chamas causada pela lamparina, se contentasse em retirar a lamparina do quarto. E? fora de du?vida que tal ato pouparia consideravelmente a ac?a?o dos bombeiros”.
Concluiu:
“a teoria e a pra?tica do experimento de Rank sa?o coisas do passado – na?o menos que a prosperidade americana”
No caso de Ferenczi, digni?ssimo destinata?rio in memoriam do ensaio, as coisas se passam diferente. Freud fez refere?ncia a ele em tre?s momentos:
1) como paciente, ou seja, um caso cli?nico para ilustrar seus argumentos. Ocorre que esta forma e? subliminar, na?o nomeada, assim como todos os fragmentos de casos ao longo de toda obra. Atrave?s do bio?grafo oficial Ernest Jones o leitor fica informado que o exemplo cli?nico citado tem identidade: Sa?ndor Ferenczi.
O caso Ferenczi, escrito num u?nico para?grafo, apareceu na seque?ncia de um axioma:
“somente quando um caso e? predominantemente trauma?tico e? que a ana?lise alcanc?ara? sucesso (…) so? em tais casos pode-se falar de uma ana?lise que foi definitivamente terminada (…) em vez de indagar como se da? uma cura pela ana?lise, os analistas deveriam se perguntar quais sa?o os obsta?culos no caminho de tal cura”.
E? com este propo?sito [os problemas que surgem na pra?tica cli?nica da psicana?lise] que o caso Ferenczi foi apresentado:
“Certo homem (sic!), realizou a autoana?lise com grande e?xito e tornou-se praticante da psicana?lise com igual sucesso, chegou a? conclusa?o de que suas relac?o?es com homens com os quais rivalizava e mulheres que amava, na?o estavam livres de impedimentos neuro?ticos. Solicitou ana?lise a um outro analista que julgava superior a si. Esta decisa?o teve um resultado totalmente bem-sucedido. Casou-se com a mulher que amava e se transformou em amigo e mestre de seus supostos rivais. Muitos anos se passaram e sua relac?a?o com o antigo analista permaneceu tranquila e serena. Mas de repente, sem qualquer raza?o externa mensura?vel, surgiram problemas e conflitos. O homem que foi analisado se tornou adversa?rio antagonista do seu analista e comec?ou a critica?-lo por ter falhado em lhe proporcionar uma ana?lise completa. Ele dizia que seu analista deveria ter sido capaz de identificar as manifestac?o?es de o?dio na transfere?ncia. Para ele a transfere?ncia na?o era somente uma atualizac?a?o do amor (positiva) mas tambe?m comportava tambe?m elementos agressivos (negativa). O analista se defendia dos ataques dizendo que, na e?poca da ana?lise, na?o havia signos de transfere?ncia negativa. Mesmo que tivesse falhado em reconhecer tais manifestac?o?es – o que na?o estava totalmente exclui?do, considerando o horizonte limitado da ana?lise naquele tempo – ainda era duvidoso, supunha o analista, se poderia aponta?-lo e ativar um assunto que na?o estava presente no discurso e nas atitudes do paciente. Ativa?-lo seria uma impostura do analista. Isto porque, nem toda boa relac?a?o entre um analista e seu analisante, durante e apo?s a ana?lise, deve ser reconhecida como transfere?ncia; ha? tambe?m relac?o?es de amizade que na?o sofrem os efeitos da transfere?ncia e ja? demonstraram ser via?veis e fruti?feras”.
2) no u?ltimo para?grafo do item III onde Freud informou sobre o estado atual de sua pra?tica cli?nica:
“uma experie?ncia cli?nica de de?cadas e uma mudanc?a em minha pro?pria atividade incentivam-me a tentar responder as questo?es levadas (se ha? possibilidade de eliminar para sempre o conflito entre as exige?ncias pulsionais e as defesas do eu; se enquanto tratamos deste conflito podemos imunizar o paciente para outros do mesmo tipo; se temos o poder, para fins de profilaxia, despertar um conflito que ainda na?o esta? atuando e se e? aconselha?vel faze?-lo)”.
Freud reafirmou, no passado, seu desejo de curar pois trata?vel de um grande nu?mero de pacientes.
“Nos u?ltimos anos, dediquei-me principalmente a ana?lises dida?tica”.
E? neste ponto que devemos situar a escrita do caso Ferenczi.
Depois de argumentar sobre as questo?es citadas, concluiu:
“ao reivindicar como meta terape?utica a cura das neuroses assegurando o controle sobre as pulso?es, a psicana?lise esta? correta na teoria, mas nem sempre na pra?tica. Isso porque ela nem sempre obte?m e?xito, em grau suficiente, para tal empreitada. As bases sobre as quais o controle das pulso?es se daria sa?o muito fra?geis e e? fa?cil descobrir a causa de tal fracasso parcial (…) o poder dos instrumentos com que a ana?lise opera na?o e? ilimitado, mas bem restrito e o resultado final depende sempre da forc?a relativa dos agentes psi?quicos que esta?o lutando entre si”.
Neste ponto, o nome de Ferenczi e? citado como um
“mestre da psicana?lise”
pois dedicou-se com muito esforc?o a experimentos terape?uticos de abreviar o tratamento e, infelizmente, constatou Freud, o resultado foi em va?o. Apostar na efica?cia do tratamento psicanali?tico atrave?s de um trabalho assistencial ao ego e? manter atuante a influe?ncia hipno?tica do ini?cio da experie?ncia cli?nica de Freud.
“As razo?es pelas causas abandonei este procedimento ja? sa?o suficientemente conhecidas. Ainda na?o foi encontrado substituto algum para a hipnose”.
3) no penu?ltimo item do ensaio Freud iniciou citando o “instrutivo artigo” de Ferenczi sobre o problema do termino das ana?lises, comunicado no Congresso de Innsbruck em 1927:
“Ele concluiu com a conforta?vel garantia de que a ana?lise na?o e? um processo sem fim, mas um processo que pode receber um
fim natural, com peri?cia e pacie?ncia suficiente por parte do analista. Demonstra ainda o importante ponto de que o e?xito depende muito de o analista ter aprendido o suficiente de seus pro?prios erros e equi?vocos e ter levado a melhor sobre os pontos fracos de sua pro?pria personalidade”.
E? neste aspecto que Freud se ancora para interrogar a resiste?ncia pelo lado do analista [o que Jacques Lacan soube fazer como ningue?m ao interrogar a ana?lise dida?tica]. Qual o padra?o de normalidade psi?quica exigi?vel de algue?m que decide ocupar a func?a?o de conduzir um tratamento em psicana?lise? O mestre Freud na?o fugiu da raia e decidiu enfrentar a questa?o.
Contra os argumentos dos opositores, sustentou que
“os analistas sa?o pessoas que aprenderam (sic!) a praticar uma arte especi?fica; a partir disso, sa?o seres humanos como quaisquer outro”.
Comparando com a pra?tica medica, concluiu:
“e? razoa?vel esperar de um analista, como parte de suas qualificac?o?es, um grau considera?vel de normalidade e correc?a?o psi?quica. Ale?m disso, ele deve possuir algum tipo de superioridade, de maneira que, em certas situac?o?es anali?ticas, possa agir como modelo para seu paciente e?, em outras, como professor. E, finalmente, na?o podemos nos esquecer que o relacionamento anali?tico se fundamenta no amor a verdade e que isso exclui qualquer tipo de impostura ou engano”.
Apo?s alinhar a terape?utica anali?tica a?s outras duas profisso?es do impossi?vel [governar e educar] concluiu:
“na?o podemos exigir que o analista seja um ser perfeito antes que venha assumir a func?a?o de conduzir o tratamento de outro que demande ana?lise. Mas onde e como pode o infeliz pretendente a analista adquirir as qualificac?o?es ideais de que necessitara? em seu trabalho? A resposta e?: na ana?lise de si mesmo, com a qual comec?a sua preparac?a?o para a futura atividade. Por razo?es pra?ticas, essa ana?lise so? pode ser breve e incompleta. Essa ana?lise tera? realizado seu propo?sito se oferecer uma fiem convicc?a?o da existe?ncia do inconsciente, se o capacitar, quando o material recalcado surge, a perceber em si mesmo coisas que de outra maneira seriam inacredita?veis. So? isso na?o bastaria. No entanto, encontrando apoio no que adquiriu em sua pro?pria ana?lise, a ana?lise na?o cessa. O remodelamento do ego prossegue espontaneamente no indivi?duo analisado. Isso de fato acontece e?, na medida em que acontece, o qualifica para ser, ele pro?prio, analista”.
Finalizou indicando que
“todo analista deveria periodicamente – com intervalo de aproximadamente de 5 anos – submeter-se mais uma vez a? ana?lise, sem se sentir envergonhado por tomar esta decisa?o. Isso significaria, portanto, que na?o seria apenas a ana?lise terape?utica dos pacientes, mas sua pro?pria ana?lise que se transformaria de tarefa termina?vel em intermina?vel”.
7 – Conclusa?o: a saudac?a?o de Freud ao amigo Ferenczi
Para concluir esta incursa?o cartogra?fica sobre a corresponde?ncia, destaco dois breves textos que demonstram o legado a? histo?ria das posic?o?es de Freud sobre Ferenczi.
Em 1923, o psicanalista hu?ngaro completou cinquenta anos de vida e, como de costume na e?poca, Freud redigiu-lhe uma saudac?a?o. Iniciou narrando o histo?rico encontro do jovem medico neurologista e especialista em medicina legal com a psicana?lise atrave?s da leitura da Interpretac?a?o dos Sonhos em 1908. Descreveu aspectos biogra?ficos de sua atuac?a?o no movimento psicanali?tico nos u?ltimos dez anos, “em que se tornou, ele pro?prio, mestre e professor de psicana?lise”. O primeiro encontro pessoal, numa visita a? Freud em Viena, “foi sucedido por uma longa, intima e ate? hoje imperturbada amizade”.
No II Congresso em Nuremberg (1910) Ferenczi fez sua entrada oficial no movimento psicanali?tico, propondo e ajudando a fundac?a?o da IPA; foi um dos grandes defensores da causa freudiana frente o desprezo com que a ana?lise era tratada pelos me?dicos. Foi eleito presidente da IPA no V Congresso em Budapeste (1918) e fundador da Sociedade Psicanali?tica de Budapeste, tornando esta cidade a capital da psicana?lise na Europa:
“sob sua orientac?a?o tornou-se um centro de trabalho intenso e produtivo; e distinguiu-se por acu?mulo de capacidades de todas as demais filiais da psicana?lise”.
Em meio a narrativa dos feitos de Ferenczi, uma interpretac?a?o se destaca:
“sendo o filho do meio numa grande fami?lia, teve de lutar com o poderoso complexo fraterno, tornos- se, sob influe?ncia da ana?lise, um irma?o mais velho irrepreensi?vel, um professor bondoso e um provedor de talentos jovens”.
As Confere?ncias Populares de Psicana?lise, publicadas por Ferenczi em 1922, foi reconhecida por sua
“escrita de forma fascinante, clara e formalmente perfeita, e e? a melhor Introduc?a?o a Psicana?lise disponi?vel aos que ainda na?o esta?o familiarizados com ela. Seus escritos o tornaram universalmente conhecido e apreciado”.
Os superlativos, pro?prios numa saudac?a?o de destaque das virtudes de um grande homem, esta?o presentes na escrita de Freud:
“sua realizac?a?o cienti?fica e? impressionante, sobretudo em virtude de sua multilateralidade”
e seu trabalho e? destacado nos casos cli?nicos bem escolhidos: exemplares e pole?micos contra os que se desviaram da rota trac?ada.
“Sua originalidade (imaginac?a?o cienti?fica bem dirigida, riqueza de ideias) se demonstrou em Introspecc?a?o e Transfere?ncia de 1909, no qual “ampliou importantes sesso?es da teoria psicanali?tica e promoveu a descoberta de situac?o?es fundamentais da vida psi?quica e criou uma abordagem nova chamada terapia ativa”.
Concluiu:
“por incompleta que seja essa enumerac?a?o, seus amigos sabem que Ferenczi reteve ate? mais do que tinha sido capaz de comunicar. Em seu quinquage?simo aniversa?rio, eles esta?o unidos para desejar que lhe possa ser garantida forc?a, lazer e disposic?a?o psi?quica para trazer seus planos cienti?ficos a? efetivac?a?o em novas realizac?o?es.”
Dez anos depois, Freud escreveu o obitua?rio do amigo querido que neste intermezzo havia se afastado e rompido com aquele a quem se propo?s na?o medir esforc?os para estar em pe? de igualdade.
Retornou a?s felicitac?o?es do quinquage?simo aniversa?rio onde Freud pod
“louvar publicamente sua versatilidade e originalidade, sua riqueza de dotes; mas descric?a?o adequada de um amigo me impediu de falar da personalidade afetuosa, ama?vel, aberta para tudo significativo”.
Relembrou a viagem a? Ame?rica em 1909:
“eu lhe pedia sugesto?es sobre o que deveria falar e ele me fazia um esboc?o, que meia hora depois eu desenvolvia, numa exposic?a?o improvisada. Assim ele participou da ge?nese das Cinco Confere?ncias proferidas na Clark University”.
No Congresso de Nuremberg em 1910
“eu pro?prio o incumbi da organizac?a?o dos analistas numa Associac?a?o Internacional tal como vigora ate? hoje. Por va?rios anos passamos juntos as fe?rias de outono na Ita?lia e va?rios ensaios que fazem parte da literatura psicanali?tica nasceram nestes passeios. Quando irrompeu a grande guerra ele iniciou sua ana?lise comigo. O sentimento de tranquilidade que compunha comigo na?o foi perturbado quando, ja? tarde na vida, e? verdade, ele se ligou a? excelente mulher (Frau G.) que hoje o pranteia, sendo sua viu?va”.
Destacou ainda que
“a maioria de seus escritos converteram muitos analistas em seus disci?pulos. Na minha opinia?o, sua maior contribuic?a?o surgiu em 1924: Talassa – Ensaio de uma teoria da genitalidade; uma aplicac?a?o da psicana?lise a? biologia dos processos sexuais, talvez a mais audaciosa aplicac?a?o que jamais se tenha feito. Apo?s essa realizac?a?o culminante, aconteceu que gradualmente nosso amigo se afastou. A necessidade de curar e ajudar tornou-se nele predominante.
Provavelmente ele se impo?s metas inalcanc?a?veis com os meios terape?uticos de hoje. E? impossi?vel imaginar que a histo?ria da nossa cie?ncia o esquec?a algum dia”.
Bibliografia:
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The Corresponde of Sigmund Freud and Sa?ndor Ferenczi. Volume 1 (1908- 1914 [1993]); volume 2 (1914-1919 [1996]); volume 3 (1920-1933 [2000]). Translated by Peter Hoffer. Cambridge, Massachusetts: The Belknap Press of Harvard University Press.
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_________ (1923 [1975]). “Dr. Sa?ndor Ferenczi em seu 50o aniversa?rio”, in: Edic?a?o Standard das obras completas de Sigmund Freud, vol. XIX. Rio de
Janeiro: Imago.
_________ (1933 [1994]). “Sa?ndor Ferenczi”, in: Edic?a?o Standard das obras
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