Em solo dinamarquês, o mítico Don Juan aportou pelas mãos do jovem, filósofo e teólogo Sören Kierkegaard ao escrever Diário de um Sedutor em 1843 e publicá-lo com o heterônimo Johannes de Silentio. Eleito precursor da filosofia existencialista, sua obra contém o enlaçamento decisivo da filosofia com a literatura.
Nascido em Copenhague, Kierkegaard era filho de pastor luterano e rico comerciante de lã. Sua infância marcada pelo temor a Deus e sentimento de culpa que o mergulhava na angústia e melancolia. Era cocho e com precária autoestima. Ingressou na universidade com o propósito de estudar teologia e em 1837 conheceu Regina Olsen, jovem de 17 anos com quem iniciou namoro, prometendo fidelidade e casamento após concluir os estudos. A morte do pai interrompeu os planos do jovem Sören.
Aos 25 anos abandona a religião e passou a viver prazeres mundanos gastando a herança paterna com roupas, bebidas e mulheres. Esta sensualidade estética durou pouco. O sentimento de culpa o abate novamente com crises de erupção de angústia. Em 1841, rompeu o noivado e dedica-se aos estudos de filosofia. Com o escândalo causado decidiu viajar para Berlim e frequentar as aulas do filosofo Schelling. Foi neste período que conheceu a ópera Don Giovanni e a identificação com o mítico personagem foi imediata.
Escreveu muito e publicou com vários heterônimos. A edição completa de seus livros foi publicada em 20 volumes entre 1909-1948.Dentre os eles,clássicos do pensamento filosófico contemporâneo: Sobre o Conceito de Ironia em Sócrates; Discursos Edificantes; O Alternativo; Temor e Tremor;O Banquete; Repetição: Um Ensaio de Psicologia Experimental; O Conceito de Angústia; O Desespero Humano.
A versão de Kierkegaard para o mítico Don Juan esta intimamente ligada à sua experiência existencial. É possível reconhecer traços biográficos de marcados como princípio do que define sua posição na história das ideias: o pensamento filosofico está aterrado na existência; os conceitos são tentativas desesperadas de atribuir sentido e significação para o vivido. Um pensamento enraizado na existência contra atribuições metafísicas de essências eternas e imutáveis.O Diário de um Sedutor é, sobretudo, um registro da única experiência amorosa do autor:o relato de uma sedução, um amor de juventude.
Sua versão literária do burlador de Sevilha é marcada pela ópera Don Giovanni de Mozart e pela versão inglesa do escritor Lord Byron. A epígrafe do Diário indica a referência musical: ‘Sua paixão predominante é a jovem principiante‘. Cristalina presença da Ária ‘Madamina, il catalogo è questo‘, cantada pelo servo Leporelo.
O Diário de um Sedutor caracteriza o 1º estádio existencial: estético e sensual. O 2º é o ético e o 3º, o religioso. Cada um demarca uma temporalidade dialética que constituía dimensão existencial do ser humano. Jean-Paul Sartre sintetizou a amplitude da empreitada do filosofo dinamarquês:‘A vida subjetiva, na própria medida em que é vivida, nãopode ser objeto e um saber;ela escapa, em princípio, ao conhecimento. Essa interioridade que pretende afirmar-se contra toda filosofia, na sua estreiteza e profundidade infinita, essa subjetividade reencontrada para além da linguagem, como aventura pessoal de cada um em face dos outro se de Deus, eis o que Kierkegaard chamou de existência‘.
O modo devida estéticos e define pelo hedonismo romântico e se contrapõem ao tédio e apatia. É nesta perspectiva que se inscreve o Diário: Johannes escolhe sustentar sua existência na mais profunda contradição da experiência amorosa. O percurso da sedução da jovem Cordélia faz do autor do relato um esteta a serviço da única causa digna de viver: amar é fazer-se amado. ‘Sob o céu da estética tudo é leve, belo, fugitivo,mas assim que a ética se mete no assunto tudo se torna duro,anguloso, infinitamente fatigante. Sempre tive certo respeito pela ética. Eu sou um esteta,um erótico, que aprendeu a natureza do amor, a sua essência,que crê no amor e o conhece afundo. O supremo prazer imaginável é ser amado, ser amado acima de tudo. Introduzir-se como um sonho na imaginação de uma jovem é uma arte, sair dela, uma obra-prima‘.
O Diário é composto pela narrativa do sedutor Johannes teorizando a arte de se fazer amado até o ponto decisivo da conquista e rendição da jovem principiante. Junto ao relato,a troca de cartas do sedutor e da jovem Cordélia. ‘O deus do amor (Eros) é cego e, sendo-se suficientemente astuto, é possível enganá-lo. No que se refere às impressões colhidas,a arte consiste em ser tão receptivo quanto possível.Assim,pode-se estar apaixonado de muitas jovens ao mesmo tempo; porque as amamos de diferentes maneiras. Amar apenas uma é demasiado pouco; amar todas é uma leviandade de caráter superficial; porém, conhecer-se a si próprio e amar um número tão grande quanto possível, encerrar na sua alma todas as energias do amor de modo que cada uma receba o alimento que lhe é próprio, ao mesmo tempo em que a consciência engloba o todo – eis o prazer, eis o que é a vida‘.
Como não encontrar aqui a marca indelével que fez de Don Juan um mito? O catálogo das conquistas é o documento de identidade daquele que exerce a arte da sedução. Seduzir é estar a serviço do deus do amor e deste modo,um estilo que de marca a existência estética do amante: amar é fazer-se amado.
in: série “livros e lugares” – Caderno Cultura do Jornal de Piracicaba 11/mai/2014
ilustração: Erasmo Spadotto