Na terra de Shakespeare, o mito do burlador de Sevilha aterrissou tardiamente. Dominados pela potência moderna dos heróis tragicômicos shakespeariano, os ingleses foram
atingidos em 1818, pela meteórica obra Don Juan escrita por George Gordon Byron, o mais transgressor dos poetas do romantismo na Grã Bretanha, conhecido como Lord Byron. No solo do Reino Unido, o mito foi narrado de forma suntuosa: epopéia cômica composta em 16 cantos (interrompidos com a prematura morte do autor aos 36 anos) com estrofes de 8 versos de 12 sílabas. Este estilo lhe permitiu esculpir o mítico sedutor licencioso de Sevilha numa estatura de herói grego clássico: Don Juan, um patético e romântico Odisseu moderno.
A estrofe em oitava rima deu a Byron à possibilidade estilística para compor o herói mítico numa miríade de tons expressando as características que remetem à tradição literária do El Burlador de Sevilha; às versões da “commedia dell’arte” italiana, em especial ao libreto Don Giovanni de Lorenzo da Ponte e, à clássica versão francesa de Molière.
O Don Juan de Bayron é o protótipo do herói guiado pelo poder da deusa Fortuna: era ele um afortunado. A epopeia cômica é narrada com as marcas do escritor traçando as aventuras do personagem e comparando-o a Páris e Ajax, legendários heróis da antiguidade grega. A genialidade do poeta está na subtração do caráter ativo do sedutor de Sevilha e na adição de uma candura melancólica, fazendo do mítico conquistador um protótipo do homem idealizado pelo romantismo. “Preciso de um herói, necessidade pouco comum em nosso tempo em que a cada ano, a cada mês, surge um novo. Nenhum desses me convém. Cantarei o nosso amigo Don Juan, a quem todos temos visto na tragicômica condenação aos infernos por seus atos burlescos.”
O primeiro canto narra aspectos determinantes da biografia do herói byroniano: “Don Juan nasceu em Sevilha, bela cidade célebre pelas laranjas e as mulheres. Seus pais ( José e Inês) viviam à margem do rio Guadalquivir e pertenciam à linhagem dos nobres mais notáveis da Espanha. Sua mãe era muito instruída em todos os ramos das ciências conhecidas no idioma cristão e suas virtudes só eram comparáveis ao seus talentos. As matemáticas eram seu estudo preferido e suas tiradas espirituosas eram sublimes. Sabia latim e grego e era leitora de novelas francesas. Sua perfeição era comparada às santas modernas e, de tal modo estava fora do alcance das tentações do demônio que seu anjo da guarda havia abandonado o posto de protetor. Seu pai era de um caráter indolente e pouco afeiçoado à ciência e à sabedoria. Preferia passear pelas praças à caça de mulheres e aventuras amorosas.”
Don Juan, na infância, é descrito como um garoto mal educado, travesso e mimado pela mãe. Com a morte do pai, o jovem herói torna-se o único herdeiro e a mãe sua tutora que se esforçou para torná-lo um cavaleiro dando-lhe as instruções típicas de um nobre nas artes e nas ciências. Evitando a todo custo ao imberbe ter acesso aos livros de história natural que ensinassem a reprodução da espécie. Desse modo, pensava em livrá-lo de qualquer contágio para com os vícios do sexo. “Os professores de Don Juan ficavam em apuros quando tinham que falar sobre os impudicos amores de deuses e deusas da antiguidade mítica. O jovem lia e escutava largos sermões e tinha sempre em mãos as homilias e as histórias de vida dos santos. Seu livro preferido era as Confissões de Santo Agostinho.”
Ao completar 16 anos, Don Juan descobriu os encantos da paixão com Julia, uma jovem de 23 anos, encantadora e casta esposa de um nobre impotente de mais de 50 anos. Com ela inicia a vida sexual que será marcada por uma busca nostálgica desta bela e sedutora mulher para sempre idealizada. A descrição da jovem sedutora é impar: “o brilho dos olhos negros e orientais de Julia revelava sua origem árabe; não era bela de puro sangue espanhol, condição que na Espanha, como é sabido, constitui uma mancha. Os olhos e Julia, grandes e negros, não brilhavam como todo esplendor quando estava calada; mas quando falava, através de seu doce recato saiam raios de soberba e amor. Em suma, era uma mulher de porte e esplendor fora do comum.”
Quando o esposo traído descobre o romance, Don Juan foge para o porto de Cádiz no sul da Espanha e de lá embarca para a Grécia. Vendido como escravo na Árabia Saudita chegou até
a Rússia onde foi amante da imperatriz. Partiu para a Inglaterra passando por vários países da Europa Ocidental. Ao chegar a Londres, sua fama de grande conquistador já era conhecida por todo continente: “ao adentrar na corte inglesa, as aventuras extraordinárias de Don Juan já corria de boca em boca. Seus amores e seus combates eram conhecidos pelas cabeças românticas. Don Juan se tornou um homem da moda e a moda, em nosso povo pensador, substitui a paixão. Foi recebido com honras pelos nobres e seu modo de ser tornou-se objeto de admiração e imitação. E, como era solteiro, tinha a qualidade importantíssima aos olhos das senhoras e senhoritas. Sendo bacharel nas artes e nos amores, bailava, cantava e tinha sentimentos suaves como a mais sublime das músicas de Mozart.”
in: série “livros e lugares” – Caderno Cultura do Jornal de Piracicaba 4/mai/2014
ilustração: Erasmo Spadotto