Seguimos destacando o pressuposto para incursão nas versões da peça teatral El Burlador de Sevilha ao longo da história da literatura moderna. Antes de adentrar na estrutura textual da versão atribuída a Tirso de Molina no alvorecer do século 17, convém retornar ao argumento do escritor-filósofo Albert Camus no ensaio O Mito de Sísifo publicado no contexto da 2ª Guerra Mundial.
Na terceira parte do ensaio (O Homem Absurdo), Camus escolheu Don Juan como protótipo moderno do herói mítico (Sísifo) da antiguidade grega. Se for imprescindível reconhecer Sísifo feliz, de igual modo, podemos reconhecer Don Juan feliz. Esse aspecto é determinante na leitura das diferentes versões do mítico Don Juan. A alegria transbordante do “donjuanismo” foi destacada com precisão: Don Juan é um personagem da “commedia dell’arte”; do teatro comédia encenado nas praças públicas. Representar suas aventuras burlescas era sinônimo de sucesso para qualquer companhia de teatro na Europa moderna. Seu apelo popular era pura diversão: riso fácil.
No Seminário 5 (As Formações do Inconsciente) o psicanalista Jacques Lacan destacou, diante de seus ouvintes, a estrutura da comédia: “A comédia nos atinge por mil formulações dispersas. A comédia não é o cômico. A comédia era produzida diante da comunidade, na medida em que esta representava um grupo de homens, isto é, constituía acima dela a existência de um Homem como tal. A comédia foi a representação da relação homem e mulher num espetáculo que tinha valor cerimonial. Não sou o primeiro a comparar o teatro à missa.”
O Burlador de Sevilha se inscreve com perfeição nesta estrutura desenhada por Lacan. Não é sem motivo que o suposto autor da peça era um Frei dedicado à catequização. Com o pseudônimo Tirso de Molina, o religioso deu existência a “um Homem” exemplar do libertino profano: Don Juan Tenório. Desta matriz literária decorreram todas as versões do mítico conquistador e burlador dos códigos morais: o herói da modernidade. É também nesta matriz textual que Camus ancorou sua interpretação do donjuanismo em seu caráter de comédia. Don Juan personifica a ética do homem absurdo: o que tem o absurdo como princípio de valor. Ele é o herói absurdo tal como Sísifo e Mersault (personagem do romance O Estrangeiro).
O donjuanismo serviu para Camus estabelecer a radical distinção entre o campo da ética e o campo da moral. Don Juan é um acontecimento moderno ao inscrever a descontinuidade entre desejo, razão e fé. Nesta personificação mítica, traçou a fronteira entre ética e moral: “O que Don Juan põe em ato é uma ética da quantidade, ao contrario do santo que tende para (a moral) da qualidade. Não acreditar no sentido profundo das coisas é próprio do homem absurdo. O tempo caminha com ele. O homem absurdo não se separa do tempo. Don Juan não pensa em ‘colecionar’ as mulheres. Ele esgota a quantidade delas e, com isso, as possibilidades de sua vida. Colecionar é ser capaz de viver do passado. Mas ele rejeita a saudade, essa outra forma de esperança. Não sabe olhar os retratos.”
A ética de Don Juan é quantitativa por oposição à moral dos santos que é qualitativa. Isto implica reconhecer o donjuanismo como ato de transgressão (ultrapassamento) moral. Sua condição mítica de burlador dos códigos morais só é possível porque reconhece os limites de seu querer e é senhor absoluto de seus atos. Ele tem consciência da distinção metafísica entre bem e mal e decide situar sua existência num ato de ultrapassagem desta distinção. Sua ética esta situada num para além do bem e do mal. Ela é afirmativa: a vida é o valor dos valores.
Camus definiu as características de Don Juan e, por extensão, do donjuanismo: “Se bastasse amar, as coisas seriam muito simples. Quanto mais se ama, mais o absurdo se consolida. Não é de modo algum por falta de amor que Don Juan vai de mulher em mulher. É ridículo representá-lo como um iluminado em busca do amor total. Mas é até porque ele as ama com igual arrebatamento e cada vez com toda inteireza, que lhe é preciso repetir esse dom e esse aprofundamento. Don Juan é triste? De modo algum. Tudo nele é claro e alegre. Todo ser saudável tende a se multiplicar. Da mesma forma Don Juan. Mas, além disso, os tristes têm duas razões para sê-lo: eles ignoram ou esperam. Don Juan sabe e não espera. Ele faz pensar nesses artistas que conhecem seus limites, não passam deles jamais e, nesse intervalo precário em que seu espírito se instala, tem todo o desembaraço dos mestres. E esta bem aí seu gênio: a inteligência que conhece suas fronteiras. Até a fronteira da morte física. Por isso Don Juan ignora a tristeza. Desde o instante em que ele sabe, seu riso explode e o leva a perdoar tudo.”
in: série “livros e lugares” – Caderno Cultura do Jornal de Piracicaba,23/mar/2014
ilustração: erasmo