A potência do real pandêmico invadiu o cotidiano de tal maneira que nos convoca a representar o cenário caótico em que estamos inseridos. A reação mais primária diante do perigo de morte iminente é a negação: ‘não está acontecendo nada, é só uma gripezinha que ataca idosos’. Ressurge o mais danoso discurso para educação sanitária: grupo de risco. Não há grupo de risco, todos estão em risco e a prevenção é para todos.
No final da década de 1980, quando surgiu o diagnóstico da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) isolando o agente viral patogênico (HIV), o conceito de grupo de risco serviu de forma danosa para disseminar o vírus entre os que não se identificavam com o grupo de riscos: homossexuais, hemofílicos, profissionais do sexo e usuários de drogas injetáveis. Como a história demonstrou, o vírus não obedeceu às cercas morais e o número de mulheres casadas infectadas transbordou as estatísticas para nos ensinar que o vírus contamina quem pratica sexo sem proteção.
Agora, com a expansão da pandemia do coronavirus chegando no Brasil, novamente se reabilita a categoria grupo de risco para transmitir à população que não há motivo para se preocupar com a contaminação se você não se identifica no grupo nomeado de risco. É um desserviço à preservação da saúde; é um discurso criminoso restringir o perigo àqueles que estão na faixa etária acima dos 60 anos. O vírus não obedece a barreiras etárias.
Negar a existência do real pandêmico com discursos ideológicos potencializa os efeitos nocivos da contaminação. Os responsáveis pela saúde pública que insistem no negacionismo cometem um crime de lesa pátria pois incentivam a população a seguir com seus afazeres cotidianos, com suas atuações sem freio, fingindo não ver a presença insidiosa da morte que nos espreita no espaço de convivência social.
A situação de outros países que acumulam cadáveres sem recurso técnico e científico para conter a devastação do Covid-19 deveria servir de alerta para nos preparar no enfrentamento da pandemia. Fico a me perguntar, diariamente, por que raios os brasileiros acreditam, dão crédito, a esse discurso criminoso disseminado pelo governo federal que vocifera que não é tudo isso que a mídia confiável e os cientistas renomados estão a nos advertir: a única, repito, a única forma de proteção é a reclusão ao ambiente do lar; isso claro, para os que tem um teto para se abrigar.
Reclusão deliberada é uma escolha protetiva para os que amam a vida e a valorizam como bem supremo: nada vale mais que a vida. Ela é o valor dos valores e preservá-la é um compromisso ético consigo mesmo, com os que você ama e com a coletividade. Se o valor da vida está em jogo neste tenebroso tempo de pandemia, cabe a cada um dar provas de proteção, preservação deste bem maior.
Não é hora de contabilizar os prejuízos materiais, as perdas, as renúncias e frustrações. A hora é de proteger a si e aos que você ama, esperar com grande dose de paciência, o tempo pandêmico passar. Sim, ele vai passar e, só depois, reconstruiremos o cotidiano: por certo, numa outra escala de valores.
Marcio Mariguela