No ensaio filosófico O Erotismo publicado em 1957, Georges Bataille distinguiu, numa relação dialética, dois termos (interdito e transgressão): “A transgressão excede sem destruir um mundo profano de que ela é o complemento. A sociedade humana não é somente o mundo do trabalho. Simultaneamente ela é composta pelo mundo profano e pelo mundo sagrado, que são as duas formas complementares. O mundo profano é o dos interditos. O mundo sagrado abre-se a transgressões limitadas. É o mundo da festa, dos soberanos e dos deuses”. A touromaquia (arte de torear) foi concebida pelo autor como uma festa sagrada num mundo profano. No desfecho da novela erótica A História do Olho, como cenografia há uma arena de touros (tourada). O erotismo adquiriu, com Bataille, um estatuto de experiência sagrada no profano: um festim estético sensual.
Após percurso por alguns lugares de Sevilha, chegamos ao conteúdo do livro A História do Olho. Como destacado no artigo anterior, o livro foi escrito por Bataille em 1927, por indicação
de seu psicanalista Adrien Borel. Sensível ao desejo latente do jovem angustiado, Borel utilizou o ato de escrever como um recurso de tratamento dos sintomas de sofrimento psíquico: dar vazão, pela escrita, aos fantasmas que habitavam as obsessões de Bataille com a imagem infantil do pai cego e paralítico, objeto de seu mais intenso e sincero amor.
O livro foi publicado deliberadamente com o pseudônimo, Lord Auch, pois Bataille não consentiu a publicação do nome próprio como autoria, somente nas edições póstumas seu nome próprio foi designado. Há duas razões para decisão do anonimato: na condição de funcionário público (era arquivista na Biblioteca Nacional da França) evitava processo administrativo por ultraje à moral e aos bons costumes e, por conseguinte, a demissão; por outro lado, o pseudônimo preservava o conflito familiar com o irmão mais velho a quem jurou segredo sobre os constrangedores eventos de infância com pai sifilítico, cego e paralítico. Afinal, no último capítulo (Reminiscências) contém relato autobiográfico determinante para as fantasias em torno do olho.
A novela erótica de Bataille reinscreve, no alvorecer do século 20, a pulsante obra literária e filosófica do Marquês de Sade publicada no final do século 18. O livro narra a iniciação sexual de um jovem de 16 anos com uma garota da mesma idade, Simone. Tal como emissária dos deuses Eros e Dionísio, Simone conduz o imberbe a se entregar aos imperativos do desejo polimorfo e perverso. O jogo erótico é definido pelo feminino desejante; o masculino desejado vai cumprindo as tarefas ditadas pela ninfa reluzente. A aventura erótica do casal ultrapassa, pela transgressão, os imperativos morais dos códigos de conduta. A história começa numa “praia de x” na França e termina sob o sol de Sevilha, lugar em que os jovens amantes viverão a experiência sagrada do erotismo numa arena de touros. O livro contém, em germe, as três formas de erotismo: dos corpos, dos corações (afetos) e do sagrado.
Roland Barthes descreveu o primeiro livro de Bataille como uma composição metafórica: “um termo, o olho, passa por variações através de certo número de objetos substitutivos, que mantêm com ele a relação estrita de objetos afins (uma vez que são todos globulares) e, contudo, dessemelhantes. Os substitutos do olho são declinados: recitados como forma flexionais de uma mesma palavra”. O substrato desta composição metafórica se encontra numa reminiscência do autor: “Nasci de um pai sifilítico (tabético). Ficou cego (já o era ao me conceber) e, quando eu tinha uns dois ou três anos, a mesma doença o tornou paralítico. Em menino adorava aquele pai. O mais constrangedor, aliás, era o modo como me olhava. Ele tinha uns olhos grandes, muito abertos, num rosto magro, em forma de bico de águia. Durante a puberdade, a afeição por meu pai se transformou numa repulsa inconsciente.”
A redação do livro é um testemunho dos efeitos de libertação que o processo de tratamento psicanalítico pode proporcionar. Em uma entrevista a Madeleine Chapsal em 1961, Bataille confidenciou: “Fiz uma psicanálise que talvez não tenha sido muito ortodoxa, porque só durou um ano. É um pouco breve, mas afinal transformou-me do ser completamente doentio que era em alguém relativamente viável. O primeiro livro que escrevi, só pude escrevê-lo depois da psicanálise, sim, ao sair dela. E julgo dizer que só liberto dessa maneira pude começar a escrever”. Deste ato inaugural nasceram os ensaios, A Parte Maldita, O Erotismo, A Experiência Interior e A Literatura e o mal: marcos fundadores da estética literária que compreende o erotismo como uma experiência sagrada: “do erotismo é possível dizer que ele é a aprovação da vida até na morte”.
A literatura é o espaço de transgressão por excelência: onde os limites e paradoxos da trágica condição humana podem ser encenados livremente. A literatura erótica está muito além dos 50 tons de cinza: sucesso de venda num tempo carente de estética. Na atualidade, o erotismo é subjulgado pelos apelos pornográficos do corpo reduzido à materialidade do consumo. Pornográfico é o erotismo sem véu. É por isso que A História do Olho permite ver além das variações em cinza.
in: série “livros e lugares” – Caderno Cultura do Jornal de Piracicaba,09/mar/2014
ilustração: erasmo