Desde que tomei gosto pela leitura, encontrei nos livros companhia para percorrer os caminhos que tenho trilhado no decurso de minha existência. Os livros ganhavam uma personalidade, identidade antropomórfica. Gosto de pensar que o livro tem registro de identidade, semelhante a um R.G. Ele é um objeto no mundo que foi criado: tem um pai ou uma mãe, na verdade, seu autor (a) assume na escrita a função paterna e materna. Tem também um nome, seu título (às vezes, subtítulos — uma espécie de adjetivo agregado ao título).
Um livro que se preze tem um local de nascimento (não confundir com o local onde foi concebido). O nascimento de um livro (ou de qualquer obra de arte e de pensamento) se dá em um local geograficamente localizado e localizável. Além de ser um acontecimento no tempo. Sigmund Freud, por exemplo, solicitou ao seu livreiro que imprimisse o ano de 1900 no seu livro A Interpretação dos Sonhos; embora o livro tenha nascido meses antes, 1899. O inventor da psicanálise marcava assim a extemporaneidade de sua obra.
Admitindo o pressuposto da certidão de nascimento ou do registro civil de um livro, convido os leitores acompanharem a apresentação do R.G. de alguns livros escolhidos para compor esta série semanal no caderno cultural. O propósito é partilhar minha experiência histórica de leitor. Os livros escolhidos para contar o local de nascimento serão colhidos na seara da filosofia e da literatura. É um convite a buscar a localização do livro. Onde foi escrito? Em que circunstância geográfica e história o autor escreveu e publicou? Qual o contexto que permite a entrada no livro, conhecer seu conteúdo, interpretar seus enunciados, viver suas histórias, sentir as experiências existenciais de seus personagens?
Inicio com um livro concebido em um triângulo amoroso. Em maio de 1882, o filósofo Friedrich Nietzsche, o escritor Paul Rée e a escritora Lou Andreas-Salome passaram as férias no Lago Orta, ao norte da Itália. Desse passeio nasceu A Gaia Ciência, a ciência alegre, aterrada na dimensão trágica da existência humana. Uma ciência transbordante de singularidades, de histórias e casos porque aceita com resignação conviver com o ocaso e não com a ocasião.
Em 20 de agosto de 1882, Nietzschen enviou ao querido amigo músico Peter Gast, juntamente com uma carta, um exemplar da Alegre Ciência dizendo que tinha definido sua posição em relação ao filósofo Arthur Schopenhauer e ao músico Richard Wagner: “Não voltarei provavelmente a referir-me a eles; mas agora quis deixar definitivamente assente a minha atual posição, quanto às opiniões que sobre eles manifestava antigamente. Não tomemos ódio à vida; procuremos afirmar-nos sempre e cada vez mais naquilo que somos: os homens da alegre sabedoria”. Noutra carta a Erwin Rohde, se referiu à Alegre Ciência como “o livro que fará com que muitos fujam de mim, assustados.”
O nome escolhido para o livro revela uma duplicidade de sentido: Gaia como uma divindade da mitologia grega que representa a Terra, uma ciência aterrada, vinculada à terra, enraizada e como palavra alemã que designa a alegria, um estado de contentamento, exaltação. Portanto, uma ciência exuberante, transbordante só pode constituir-se por não renunciar a dimensão terrena, corpórea.
A Alegre Ciência ou A Gaia Ciência traz as marcas do local onde foi concebido: a atmosfera do “Il lago d’Orta”, em um estado de enamoramento apaixonado por uma exuberante e sedutora mulher: Lou Andreas-Salomé. Os aforismos que compõem o livro é a mais sublime afirmação da vida contra todas as adversidades: “Depois que cansei de procurar, aprendi a encontrar. Depois que um vento me opôs resistência, velejo com todos os ventos.”
in: série “livros e lugares” – Caderno Cultura do Jornal de Piracicaba, 15/set/2013