Catálogo das Paixões
Para a Luana, filha do amor
O bicho falante é o único ser vivo submetido à ordem simbólica e ao comércio de palavras. Certamente há linguagem em todas as espécies: cada uma delas possui um código de comunicação que lhe é própria. Com a espécie humana não é diferente: estamos submersos num oceano de signos, símbolos e códigos linguísticos. Na classe dos humanos há um fenômeno que atraiu a libido de incontáveis narradores para desvendar, desvelar o mistério dos mistérios: a multiplicidade de línguas maternas. Cada agrupamento hominídeo criou seu próprio código de comunicação, sua linguagem. Há linguagens na linguagem.
Convocado pelas divindades ao trabalho de nomear as coisas do mundo e os estados afetivos em seu ser corporal, os animais falantes construíram uma rede inesgotável de sentido e significação. Ao entrar no mundo, o filhote humano precisa aprender a língua materna. Aquela (ou aquele) que exerce a função materna para o infans (o que ainda não fala) terá a divina missão de transmitir a linguagem. Antes mesmo de conseguir nomear os objetos e seus quereres e sentires, o infans é nomeado pelo outro materno, por sua vez, é nomeado pelo Outro da linguagem. Exemplos: ele é raivoso, ela é amorosa; ele é valente, ela é covarde. Frases simples assim vão sedimentando a identidade psíquica: o polichinelo EU, também conhecido como Ego.
Assim como o nome das coisas, o nome de estados afetivos também é codificado, catalogado, enumerado, hierarquizado. Há coisas que valem mais do que outras. Há palavras que valem mais do que outras. Há palavras proibidas, malditas, não-ditas, benditas. Os humanos possuem uma compulsão estrutural para ordenar as coisas e os afetos. Muitos até coisificam os afetos e vendem como uma mercadoria qualquer no comércio dos nomes.
As palavras têm valor de fato e os nomes são fatos de valores. Nossa identidade cultural ocidental deita suas raízes no solo da civilização grega e romana. É de lá que a palavra páthos vem para significar estados afetivos, emoções e sentimentos reunidos no nome paixão. Do verbo pásklo significa: ser afetado de tal ou qual maneira, experimentar tal ou qual emoção ou sentimento. Donde advém, o patológico como sinônimo de sofrimento, padecimento, doença. As paixões são plásticas e volúveis; efêmeras e furiosas; inesperadas e desejadas ardentemente.
Os gregos designavam páthos como um estado de transbordamento de emoções e sentimentos incontroláveis. O sujeito apaixonado encontra-se num estado afetivo de perturbação, transtorno e obscuridade afetando seu juízo crítico e consciente. Vem daí o hercúleo trabalho demonstrado pelos tratados e catálogos das paixões para compreender, nomear, identificar os estados afetivos e assim manter o esforço ascético de autogerência, autogoverno das paixões: a autarcia (estado de temperança e moderação dos afetos). Dotado da capacidade intelectiva (juízo lógico) os humanos foram convencidos de por um imperativo moral: manter as paixões em rédea curta; dominar os afetos e não ser dominado por eles.
Ocorre que os afetos são dotados de tal liberdade selvagem e não se rendem facilmente. Quando parecem submissos, sempre dão um jeito de mostrar a insubmissão. Nossa vida afetiva (passional) transcorre à revelia e à deriva de nossa vida corporal. Corpo e Afetos habitam esse EU fragmentado e trapalhão. Num esforço patético o EU (ego) tenta se equilibrar e harmonizar as poderosas forças somáticas e psíquicas. Daí sermos todos marcados por um corte estrutural a nos dividir em corpo e espírito (alma, psique).
As paixões são afetos. Afetam o corpo sensível numa miríade de emoções demandantes de nome. As palavras (signos linguísticos) são utilizadas como ferramentas para nomear estados afetivos: “diga o que você está sentindo?”. É um chamado, uma convocação a expressar aos outros e a si mesmo, um determinado estado afetivo. Cada paixão é chamada por um nome: palavra que lhe dá reconhecimento e legitimidade social. Há paixões sem nome ou inomináveis pelo recalcamento moral. Essas indomáveis causam graves estados patológicos no corpo e na alma. Os afetos afetam órgãos, tecidos, glândulas, sistemas digestivo, circulatório e demais estados somáticos. Quando as paixões entram em confronto (e sempre estão em pé de guerra!) o corpo e o espírito entram em convulsão, delírios e alucinações. Não é sem razão que o ciúme é um estado afetivo delirante.
Com a sessão “catálogo das paixões”, os leitores da Arraso estão convidados a uma reflexão sobre os afetos que nos afetam. Iniciaremos com a mais eloquente das paixões: o Amor. Apaixonado é o estado do ser em ato de amar. O amor é a paixão por excelência. Embora no discurso cotidiano ocorra a separação entre amor e paixão, aviso de antemão que considero ser injustiça para com ambos. Tal separação de estado amoroso e apaixonado desqualifica e desvaloriza cada um deles. Numa sublime e arrebatadora dialética, o amor e a paixão formam a síntese com a potência de fazer da vida uma obra de arte.
Os gregos possuíam três palavras para designar o amor: Eros, philia e ágape. Cada uma referia-se à nomeação de determinado estado afetivo. Do verbo erãn (estar apaixonado), Eros foi elevado à categoria de deus primordial por Hesíodo em sua Teologia: “o mais belo dentre os deuses imortais”. Durante toda a extensão dos períodos clássico e helenísticos, Eros personifica a força que mobiliza a paixão. A célebre metáfora visual de Eros como Cupido representa bem esta rede de significação: o vínculo do amor à paixão, do Eros ao páthos. Estar apaixonado por, desejar outro ser e com ele fusionar-se numa volúpia amorosa era sempre manifestação do estado afetivo erótico.
No diálogo O Banquete, Platão construiu cenas hilariantes para tecer elogios a Eros, o deus do Amor. Cada convidado ao banquete (em homenagem ao prêmio de melhor poeta do ano concedido a Agatão) fez seu discurso em louvores a Eros. Coube a Sócrates a mais brilhante e eternizada narrativa sobre a filiação do Amor. Ao narrar a história do nascimento de Eros, contada por Diotimia, a sacerdotiza do templo de Afrodite, em seu elogio, traçou a genealogia de Eros: filho do deus Póros com a mortal indigente Pênia. Numa festa em celebração ao nascimento de Afrodite, Poros embriagado foi ao jardim para tomar um ar fresco e adormeceu. Pênia que estava à espera das migalhas, aproveitou a oportunidade para se acasalar com Póros adormecido. Deste ato inaugural, concebeu um filho: Eros, o filho da fartura com a miséria. Em seu ser, Eros carrega a penúria da mãe e o transbordamento excessivo do pai. O apaixonado, afetado pelo amor, está numa situação ambivalente entre a fartura e a falta, entre a carência e o excesso. Bela e inspiradora metáfora!
fonte: Revista ARRASO / Filhos – Ano 6, nº 36, 2014 – Publicação do Jornal de Piracicaba
Illustração: Erasmo