No cenário de Sevilha, um homem consagrado a Deus escreveu peças teatrais para transmitir os valores da cristandade ao povo espanhol. No texto El Burlador de Sevilha, encontra-se um personagem que personificou os valores da modernidade ainda em estado germinal. A eterna batalha do Bem contra o Mal adquiriu neste burlador um novo e inusitado estatuto antropológico. No alvorecer da Idade Moderna, Don Juan Tenório foi elevado à categoria mítica de herói combatente: o que fez de suas conquistas, o Sumo Bem.
Tirso de Molina, pseudônimo do suposto Frei Gabriel Téllez, criou a figura de um galanteador libertino, colecionador de mulheres. Uma verdadeira lagosta, como bem definiu o seu criador: “langosta de las mujeres”. No julgamento final, Don Juan é condenado ao fogo do inferno, não pede clemência nem perdão, não renuncia. Suas conquistas são a verdadeira afirmação de sua existência: sua virtu, sua arete. Conduziu sua vida temporal para além do bem e do mal. Escolhido herói da modernidade, Don Juan tornou-se um mito. Tirso: feliz escolha para garantir o anonimato do religioso escritor. O que é um tirso? Charles Baudelaire comparou a batuta do músico Franz Liszt com um tirso e respondeu a pergunta: “No sentido morale poético, tirso é um emblema que trazem na mão os sacerdotes ou sacerdotisas quando celebram a divindade de que são os intérpretes e os servidores. Fisicamente, porém, não é mais do que um bastão, vara de lúpulo, tutor de vinha, duro, seco e reto. Em torno desse bastão, em meandros caprichosos, brincam e doidejam hastes e flores: estas, sinuosas e fugidias; aquelas, pendidas como sinos ou taças emborcadas. E uma gloria surpreendente jorra dessa complexidade de linhas e de cores, suaves ou violentas. Não vos parece que a linha curva e a espiral fazem a corte à linha reta e dançam-lhe em derredor numa silenciosa adoração?”
Bela metáfora para render minha homenagem a Tirso de Molina, o genial criador do mítico Don Juan. Das mãos do generoso Frei surgiu o protótipo do homem profano: o que não segue os ensinamentos morais da sagrada fé cristã. O predicado (burlador) e o cenário escolhido para designar o personagem Don Juan Tenório são dignos de nota. Burlador adjetiva e substancializa, cria uma identidade, um modo de ser. O sujeito que pratica burla (artifício para enganar, trapacear) é burlão, burlante ou burlista. Na burla, o burlador é um brincalhão alegre e
gracejador: o que (pro)voca o riso. O burlador possui a nobre virtude de rir de si mesmo, de suas travessuras burlescas. Não é sem motivo que Don Juan só faz rir seu criado trapalhão, o servo contabilizador das conquistas de seu amo e senhor, o testemunho fiel, portador do célebre caderno.
O texto El Burlador de Sevilha editado em 1630 por Manuel de Sande y Francisco de Lyra em Sevilha foi impresso em Zaragoza. Incluído entre as Doze Comédias de Lope de Veja, a autoria do El Burlador é um problema em aberto. Há diversas e diferentes versões de Don Juan ao longo da história da modernidade. Escrito para encenação teatral, várias camadas textuais compõem sua arqueologia e a gênese histórica de sua redação final. Na edição de Alfredo Rodrígues López-Vásquez (Ed. Cátedra, Madri, 1989) há rigoroso e volumoso trabalho de pesquisa para definir o contexto do El Burlador. Com Pedro Calderón de La Barca (autor do clássico A Vida é Sonho), Tirso de Molina representa o Século do Ouro do teatro espanhol. Ambos representam para a Espanha o que William Shakespeare representa para a Inglaterra; Racine e Molière para a França. Gênios, arautos de um novo tempo: a modernidade.
Nesta série apresentarei algumas versões (as preferidas) do mítico Don Juan no campo histórico da literatura moderna. A espanhola (fonte nascente de todas as outras); a francesa, escrita por Jean-Baptiste Poquelin (conhecido Molière) em 1655; a italiana, libreto de Lorenzo da Ponte para a ópera Don Giovanni de Wolfgang Amadeus Mozart, encenada no final do século 18; a inglesa, do escritor Lord Byron, redigida em 1818 no formato de 16 Cantos; a dinamarquesa, do filósofo Sören Kierkegaard, publicada em 1843 com o heterônimo Johannes de Silentio; e finalmente, a versão portuguesa, libreto de José Saramago publicado em 2005.
Dois pressupostos guiarão nossa incursão nas versões citadas. Tenho reiterado que Don Juan é o primeiro mito moderno: emblema da modernidade. Utilizo o conceito modernidade tal como foi criado pelo poeta Charles Baudelaire em 1863. Em especial, dois ensaios de crítica de arte, o Heroísmo da Vida Moderna e O Pintor da Vida Moderna: “a modernidade é o transitório, o fugidio, o contingente; é uma metade da arte, sendo a outra metade o eterno e imutável”. Don Juan é o herói moderno e sua potência estética é representar (personificar) o ser moderno. Independente das múltiplas interpretações construídas ao longo dos séculos há um traço essencial em todas elas: Don Juan encarna o transitório, o fugidio e o contingente e, sendo arte, é eterno e imutável em seu cerne, transpor os limites.
Outra referência é o ensaio filosófico O Mito de Sísifo, publicado em 1942, pelo filósofo franco-argelino Albert Camus. Simultaneamente a escrita do ensaio, redigiu O Estrangeiro, criando no personagem central (Mersault) a encarnação da filosofia do absurdo. A sua maneira, Camus buscou na figura mítica de Don Juan o protótipo do herói absurdo. Neste mito fundador da modernidade, encontrou o ponto de ancoragem para sustentar a tese de que Don Juan possui a coragem heróica de Sísifo que por ter aprisionado a morte foi condenado a rolar a rocha até o cimo da montanha. Sísifo, Don Juan e Mersault possuem a exaltação da vitória: mesmo condenados, fi zeram da alegria e felicidade o sumo bem.
in: série “livros e lugares” – Caderno Cultura do Jornal de Piracicaba,16/mar/2014
ilustração: erasmo