Don Juan, o burlador de Sevilha (4)

Tendo estabelecido a peça teatral El Burlador de Sevilha, atribuída a Tirso de Molina, como matriz genética de todas as demais versões e reinterpretações ao longo da história da literatura moderna, podemos seguir adiante com as apresentações. Na versão francesa, Don Juan ou o Festim de Pedra, escrita por Molière e encenada no Palais Royal de Paris em janeiro de 1665. No conjunto das peças deste genial dramaturgo francês, Don Juan e Tartufo são exemplares na desconstrução da moral cristã hegemônica à serviço da aristocracia monárquica. O sucesso de ambas é proporcional ao elemento belicoso que explode em frases perfeitas da mais fina ironia e sarcasmo. O texto realiza o trabalho de desconstrução do edifício moral dominante no século 17.

 Molière capturou a seiva do Burlador de Sevilha e incorporou em sua versão, as diferentes interpretações do mítico Don Juan que circulavam pela Europa com o título O Convidado de Pedra. Entre 1625 e 1635, a peça com este título foi representada (com registro documental) por companhias de teatro: em Napóles por Pedro Ossorio e Francisco Hernández Galindo e, em Sevilha por Roque de Figueroa. Em solo francês o mito de Don Juan se implantou através das interpretações da “commedia dell’arte” das companhias italianas.

Antes da versão de Molière, circulava pela França a versão de Don Juan narrada na peça O Festim de Pedra ou o Filho Criminoso traduzida e encenada pela companhia teatral de Dorimond (pseudônimo de Nicolas Drouin) em 1660. Depois vieram as versões de Thomaw Corneille em 1677; Alfred de Musset, Uma Manhã de Don Juan, 1833; Alexandre Dumas, Don Juan de Marãna ou a Queda de um Anjo, 1836 e; Arthur de Gobineau, O Adeus de Don Juan, 1844. Os últimos batizaram o mito Don Juan no romantismo e selaram os avatares das interpretações hegemônicas no século 20. Enquanto a ênfase do Burlador de Sevilha está no problema da honra, o destaque do Convidado de Pedra é o problema da hospitalidade. A versão de Molière tece estes dois fios com mestria e sagacidade: a hospitalidade servirá como estratégia para desnudar a honra. As leis da hospitalidade e a honra como lei estruturam os códigos morais numa sociedade aristocrática. A potência moderna do donjuanismo está justamente no modo como interrogou o campo da moral e deste modo, elevou Don Juan a condição de mito universal na modernidade. Os problemas morais, sociais e ideológicos configuram uma constante cênica: a morte como castigo do transgressor, a integração do sobrenatural (leis divinas) como valor simbólico exemplar no mundo da vida cotidiana.

Molière capturou a potência revolucionária do Burlador de Sevilha em seu aspecto de crítica social. A matriz espanhola do escrito fundador do mito de Don Juan atacava ferozmente a condição moral da Espanha, exemplificada por uma das cidades mais importantes, Sevilha, contrastando ao mesmo tempo a vida na cidade com a vida no campo. A peça interroga criticamente todas as classes sociais, incluindo o rei e o rústico lavrador, mas tem como flanco principal, a crítica à moral religiosa sustentada pela nobreza.

A escrita dramatúrgica elege a cena num determinado espaço e tempo. Na versão de Molière a ação dramática é situada na Sicília na segunda metade do século 17. Este deslocamento (de Sevilha para a Sicília), além da homofonia, faz referência à tradição italiana do mito: a “commedia dell’arte”. O 1º Ato inicia com o diálogo entre Leporelo (servo fiel, escudeiro de Don Juan) e Gusmão (servo de Dona Elvira, desonrada pelo galante sedutor): um diálogo entre servos na cozinha do castelo onde Don Juan habita temporalmente.

Com tabaqueira em mãos, Leporelo faz um elogio ao uso do rapé: “Diga o que diga Aristóteles e toda sua filosofia — não há nada que se compare ao rapé. É a paixão dos nobres. Não exagero – quem não ama o rapé não é digno da vida. O rapé não apenas purifica e alegra o cérebro, mas estimula a alma, conduz à virtude, e o seu uso refina as boas maneiras. Repare. Note a generosidade de quem o uso, a graça com que o oferece a todos. O rapezista antecipa o desejo alheio. Acho admirável essa propensão do rapé para inspirar sentimentos de gentileza e desprendimento em todos o que fungam” (sigo com a tradução/ adaptação de Millôr Fernandes publicada pela LP&M). Este elogio do rapé como abertura cênica dá o tom à melodia dionisíaca que emana na versão de Molière para o mítico Don Juan.

No próximo domingo continuamos com o texto de Molière destacando o aspecto irônico-cômico no par Don Juan / Leporelo. Como sugestão, indico aos leitores que assistam ao vídeo conferência A Sedução dos Libertinos: Don Juan, Casanova e Sade, com a professora Eliane Robert Moraes (cpf lcultura.com.br no link videoteca).

in: série “livros e lugares” – Caderno Cultura do Jornal de Piracicaba,31/mar/2014

ilustração: erasmo