Chegamos ao final desta série sobre o mítico burlador representante do arquétipo herói moderno da cultura ocidental. Para encerrar, apresento a versão
“Don Giovanni ou o Dissoluto Absolvido” do aclamado escritor português José Saramago. O livreto foi redigido atendendo ao convite do compositor Azio Corghi apaixonado pela literatura de Saramago. Ambos recriaram, com mestria e sagacidade, a clássica história do licencioso herói de Sevilha, dando-lhe a absolvição final. A ópera foi encenada no Teatro alla Scala de Milão em 2003.
Após ter recebido a notícia da atribuição do Prêmio Nobel de 1998 ao escritor português, Corghi enviou-lhe a seguinte mensagem: “Você me possibilitou dizer, através da música, aquilo que penso dos acontecimentos do mundo”. Por sua vez, Saramago expressou admiração pela obra do compositor italiano: “A arte, a amizade, a generosidade de Azio Corghi trouxeram à trajetória da minha existência uma riqueza que eu jamais teria adquirido sozinho. Graças a Corghi, a urdidura das palavras que criei tornou-se música, tornou-se canto. Foi um feliz encontro, o nosso. Creio que vale a pena conservar o entrelace que somos, ele e eu”.
Numa carta de julho de 2001, assinada juntamente com sua amada esposa Pilar (a quem é dedicado o livreto), Saramago escreveu a Corghi: “Não sei como lhe agradecer por tudo o que você fez, elevando a minha literatura ao céu da música. Temos plena consciência de ter vivido, graças ao seu trabalho e à sua amizade, momentos que se inscrevem entre os mais belos da nossa vida”. Indicativos preciosos de que a peça teatral Don Giovanni ou o Dissoluto Absolvido é um texto sob encomenda: um hino à amizade celebrando o feliz encontro da letra com a música.
Ambos enfrentaram o enigmático desafio de recriar a ópera Don Giovanni de Mozart apresentada pela primeira vez em 1787 em Praga, um dos lugares mais antigo e de beleza incomensurável da Europa. Esta referência a Praga é mote para Saramago escrever sua versão do mítico burlador. Como preâmbulo, o escritor português narrou sua memória infantil com a cidade de Praga e o encontro sensível como viajante, em especial, o dia em que adentrou no teatro em que foi encenada a ópera de Mozart.
“E eis que a prestante pessoa que me serviu servia de guia diz em certa altura do passeio: ‘agora vou levá-lo ao teatro onde se estreou o Don Giovanni de Mozart’. Não exagero nada se digo que o coração me deu um salto dentro do peito. Se há uma ópera no mundo capaz de pôr-me de joelhos, rendido, submetido, é esta. Tinha-me esquecido, ou não lhe dera suficiente atenção se alguma vez o li, que Don Giovanni havia visto a luz da ribalta em Praga. E ali estava eu, com o pulso agitado e as mãos tremulas, rodeado de século 20 por todos os lados, menos por aquele, desejando uma máquina de viajar no tempo para desandar num instante os quase duzentos anos que me separavam daquele momento, e sabendo, que remédio senão sabê-lo, que nem o tempo nem os rios podem voltar para trás”.
A potência do mito está contida na renovada capacidade de recriação. Um mito só pode ser designado como tal se for capaz de transpor os limites do tempo e do espaço e, sobretudo, ultrapassar os limites da própria linguagem em que foi criado. Nesta breve série procurei demonstrar que Don Juan é o primeiro mito moderno criado num lugar específico: Sevilha, cidade sede de tudo o que até hoje conhecemos como modernidade. Como todo mito, Don Juan foi criado e transmitido em narrativas orais que circulavam por vários lugares da Europa no alvorecer do século 16. Coube ao frade espanhol Tirso de Molina dar-lhe uma estrutura narrativa em palavra escrita. A peça El Burlador de Sevilha tornou-se assim matriz de todas as demais versões ao longo da história.
A versão portuguesa de Saramago arrasta consigo a histórica tradição de outros tantos poetas escritores que recriaram as aventuras e conquistas do galante sedutor. Conhecedor das diversas e diferentes interpretações do herói moderno, Saramago decidiu absolver o burlesco licencioso Don Juan: “Comecei por argumentar que sobre as malas-artes de Don Giovanni tudo havia sido dito, que não valia repetir o que outros já tinham feito melhor, que qualquer coisa que escrevesse seria o mesmo que chover no molhado. Era certo que sempre havia pensado que Don Giovanni não podia ser tão mau como andavam a pintar desde Tirso de Molina, nem Dona Ana e Dona Elvira tão inocentes criaturas”.
Ao absolver Don Juan, Saramago reinscreveu a potência do mito para além do bem e do mal e, mais uma vez, deixou estabelecido que a grandiosidade do mito está em dizer o já dito com a mesma força e inventividade com que foi dito pela primeira vez. “A minha ideia é que Don Giovanni, ao contrário do que sempre se diz, não é um sedutor, mas antes um permanente seduzido. Don Giovanni, o sujeito imoral por excelência, é um homem fiel à sua própria responsabilidade ética”.
in: série “livros e lugares” – Caderno Cultura do Jornal de Piracicaba 18/mai/2014
ilustração: Erasmo Spadotto