Ler e viajar são minhas paixões predominantes cultivadas desde a infância. Na verdade, descobri o alfabeto junto com o mapa do mundo. Lembro-me que na sala de aula do 1º ano do Grupo Escolar (assim se chamava o ensino fundamental) havia um grande mapa fixado na parede lateral. Enquanto adquiria as primeiras lições de alfabetização, entrava em devaneios através de linhas formando contornos coloridos e aos poucos fui aprendendo que se tratava de continentes, países, oceanos; territórios com outras culturas e povos habitantes deste deslumbrante planeta chamado Terra. Não demorou a perceber que a leitura é também um modo de viajar. Desde então os conhecimentos de história, geografia e literatura se tornaram objeto de meu desejo libidinal.
A minha primeira experiência de viajem mais distante ocorreu quando tinha 8 anos. Embarcamos num trem da saudosa ferrovia paulista com destino à Campinas para visitar a família de uma tia que havia migrado do sítio para a cidade grande. Viajamos a noite toda, num percurso de 300 km, a bordo de um vagão leito e, lembro perfeitamente que não conseguia dormir, pois estava habitado de expectativa transbordante. Ao desembarcar com o nascer do sol era como se adentrasse num universo onírico: ruas, avenidas, viadutos, edifícios, praças, ônibus, dominavam meu encantamento pueril. Do campo para a cidade: um trajeto inesquecível e decisivo.
A viagem ao exterior aconteceu bem mais tarde. A precária condição material tornava o sonho infantil de conhecer lugares mais distantes um projeto existencial. Enfim, chegou o acalentado desejo de atravessar as fronteiras da língua materna. Aproveitando o tempo de bonança do Plano Real (instaurado no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso) e, com estadia garantida na casa de amigos brasileiros imigrantes, aterrissei em solo norte-americano no período em que 1 dólar correspondia a 90 centavos de reais. No período de duração desta fantasia econômica de paridade (dólar-real), consumi o que tinha poupado, viajando por lugares dantes imaginados. Conheci várias cidades da costa leste dos EUA, ilhas do Caribe e Québec no Canadá.
Estava em Boston, capital do Estado de Massachusetts, quando foi criada a primeira experiência de comunicação através de um sistema de rede de computadores que prometia uma revolução nas relações interpessoais. Era o germe do que viria a se tornar a Rede Mundial de Computadores (WEB): imensa rede originária do ciberespaço. Num pub em Park Street, tomando Chimay Rouge (cerveja belga) assisti ao lançamento do programa que conectava os computadores domésticos às bilheterias de teatros, cinemas, museus e demais atividades de cultura e lazer. Naquela noite de verão tive a certeza de estar participando de um acontecimento histórico. Não tinha (e continuo não tendo) a menor ideia dos efeitos psíquicos e culturais desta conectividade emergente. Para o bem ou mal, reconheço o caráter epidêmico da compulsão hiperconectiva full time.
Embora presente neste acontecimento, instaurador de descontinuidade no modo de representação da cultura, por escolha, não participo das atuais redes sociais. Meu funcionamento psíquico continua sendo analógico. Sou o que se pode chamar de analfabeto digital, não desenvolvi o hábito de viajar pelo ciberespaço e não tenho o menor interesse nas máquinas e aparelhos denominados gadgets. Não são objetos do meu desejo. Uso o básico e ainda assim com dificuldade operacional. Por insistência, fui convencido a criar um website no qual disponibilizo os trabalhos que realizei ao longo de minha carreira profissional na forma de artigos, livros e aulas – o que de algum modo já pertenciam ao domínio público mais restrito. Também criei um blog (atualmente desativado) como exercício de escrita que tinha até então um caráter mais privado.
Voltando a Boston: é um lugar encantador. Aristocrática em seu passado, tecnocrática no presente e autocrática no futuro. A cidade se torna ainda mais exuberante pela beleza do rio (Charles River) que separa o centro histórico de sua fundação e a região em que se concentra a meca do pensamento científico-tecnológico: a Universidade de Harvard. Tudo em Boston funciona com a precisão de um relógio: desde o sistema de transporte ao respeito à lei que proibi o consumo de álcool em lugares públicos.
O ordenamento urbano no cultivo às tradições institucionais torna esta capital um grande terreno fértil para inventividades. Em Harvard respira-se o passado e sonha-se com o futuro. Os alunos sentem-se participantes da história da ciência e da tecnologia. A competição entre os estudantes é feroz. Desde o currículo escolar ao campeonato de remo no Charles River, a disputa pelo reconhecimento é a marca distintiva do sistema educacional e da própria cultura. O pensamento liberal implantou-se de forma decisiva nesta cidade marcada pelos signos e símbolos de uma sociedade civilizada.
“Cartografia do ciberespaço” – Caderno Cultura do Jornal de Piracicaba 25/mai/2014
ilustração: Erasmo Spadotto