Nas edições anteriores da Arraso iniciamos o catálogo das paixões com o afeto mais exaltado na hierarquia das emoções: o amor. Ocorre que o amor nunca vem sozinho – aliás, como a maioria dos afetos. As paixões sempre formam um par antagônico e antinômico sem o qual não haveria conflito. As contradições entre estados afetivos constituem o elemento primário das paixões.
Na cultura grega clássica a palavra páthos designava um estado de transbordamento de emoções e sentimentos incontroláveis. Nas narrativas míticas e no discurso filosófico desde a antiguidade, pathós era uma forma de nomear o conflito entre estados afetivos que causam perturbação, transtorno e obscuridade, afetando o juízo crítico e consciente. Os conflitos entre estados afetivos contraditórios causam os maiores transtornos. O caso exemplar é a oposição entre amor e ódio.
O ódio também é um estado afetivo, uma paixão. Embora seja relegado à condição de mal-dito e condenado ao silenciamento pelo recalque moral das idealizações, é preciso bem dizer o ódio, reconhecê-lo, chamá-lo pelo nome e, sobretudo, aprender a conviver com sua inefável e inexorável presença.
O psicanalista Jacques Lacan cunhou o neologismo “amódio” como síntese dialética entre amor e ódio. Somos todos seres amódicos: amamos e odiamos com igual intensidade, muitas vezes o mesmo objeto. Amar e odiar são paixões enlaçadas para todo o sempre. Por mais esforço civilizatório para silenciar e reprimir o ódio, todo este projeto está condenado ao fracasso. O retorno do recalcado se faz presente com mais força e intensidade. O ódio marca sua presença no macro e no microcosmo social. As noticias veiculadas diariamente pelas mais diferentes mídias demonstram com precisão a inexorável presença do ódio. Nos tempos atuais, ele habita o universo virtual das redes de comunicação social. Exemplos estão disponíveis por todos os lados.
Na condição de indizível, o ódio faz mais barulho e perturba o ideal de paz e harmonia que só o amor poderia proporcionar. Não sem motivo que o ódio é personificado na figura do diabo, demônio maligno que confunde e subtrai a razão. Como indesejável, o ódio se faz presente na forma de raiva, cólera, agressividade e, não raro, com muita crueldade. A associação entre amor e paz de um lado e ódio e guerra do outro também demonstra o caráter belicoso em jogo nas paixões.
O ódio é uma paixão que precisa entrar em nosso catálogo pelas razões que se seguem em três expoentes na história da cultura moderna: Thomas Hobbes, René Descartes e Sigmund Freud. Eles definiram nosso modo de ser e sentir, nossa constituição subjetiva. Vou apresentá-los na seqüência conforme a proposta inicial desta série.
Na gênese do pensamento ocidental moderno encontramos, na escrita de Thomas Hobbes de Malmesbury, a clássica distinção entre amor e ódio. No livro Leviatã, publicado em 1651, o filósofo inglês demonstra “a origem interna dos movimentos voluntários vulgarmente chamados paixões e da linguagem que os exprime”. A natureza humana é definida pela capacidade de desejar por aproximação ou aversão na relação com os objetos. Há um conatus (palavra latina, traduzida como esforço) que nos impulsiona em direção à apropriação de algo ou alguém. Tal impulso também conduz ao estado de aversão: quando o esforço é para evitar alguma coisa ou alguém. “Do que os humanos desejam se diz também que o amam, e que odeiam aquelas coisas pelas quais sentem aversão. De modo que o desejo e o amor são a mesma coisa, salvo que por desejo sempre se quer significar a ausência de objeto, e quando se fala em amor geralmente se quer indicar a presença do mesmo. Também por aversão se significa a ausência, e quando se fala de ódio pretende-se indicar a presença do objeto”.
Amar e odiar são estados afetivos que determinam a relação do Eu com os objetos do mundo exterior, sejam eles pessoas ou coisas. Amar é querer, desejar estar junto, ter o objeto próximo de si: incorporar, reunir num só corpo, fusionar. Odiar é o estado afetivo que nos impulsiona à aversão, à fuga do objeto hostil. O ódio é sempre aversivo e não raro tende a destruição do objeto. Aproximação e repulsa são ações determinadas pelo amor e pelo ódio.
René Descartes também se dedicou a construir um tratado das paixões catalogando o número e a ordem delas para demarcar a especificidade da natureza humana. No livro As Paixões da Alma, publicado em 1649, o filósofo francês definiu as seis paixões primárias que fundamentam todas as demais que podemos identificar: admiração, o amor, o ódio, o desejo, a alegria e a tristeza. No artigo 56, designou o amor e o ódio como paixões que estão relacionadas à existência do objeto e permitem estabelecer o juízo de valor bom ou mau. Quando o objeto é bom nós o amamos; quando é mau, nós o odiamos. “Quando uma coisa se nos apresenta como boa em relação a nós, isto é, como nos sendo conveniente, isso nos leva a ter amor por ela; e, quando se nos apresenta como má ou nociva, isso nos incita ao ódio”.
No artigo 79 encontramos as definições do amor e do ódio do ponto de vista psicológico: “o amor é uma emoção da alma causada pelo movimento dos espíritos que a incitam a unir-se voluntariamente aos objetos que lhe parecem convenientes e aprazíveis. E o ódio é uma emoção causada pelos espíritos que incitam a alma a querer estar separada (afastada) dos objetos que lhe apresentam nociva”. Pode-se ensinar a amar e, de igual modo, a odiar. Não são paixões involuntárias, ou seja, que não dependem da vontade. Ao contrário, são paixões que aprendemos a reconhecer e nomear pela relação entre o Eu e o objeto.
Na próxima edição, voltaremos a este aspecto para demonstrar os efeitos do ódio dirigido a si mesmo, ao Eu como objeto. Pois, como nos ensinou Sigmund Freud, o maior sofrimento psíquico é determinado pelo ódio investido contra o próprio Eu e, por extensão, aos outros com os quais convivemos.
ilustração: Erasmo Spadotto